Defender
a Síria contra o imperialismo! Por um polo proletário independente!
[Este
artigo foi originalmente escrito entre junho e julho de 2015. Devido
a dificuldades internas, ele não pôde ser publicado e acabou se
desatualizando parcialmente devido à rapidez dos acontecimentos na guerra civil
síria. Não obstante, ele ainda responde a uma série de questões
políticas que permanecem centrais nesse complexo conflito e também
lida com as posições problemáticas de certas organizações que se
reivindicam trotskistas. Por conta disso, decidimos publicá-lo
acrescentando alguns comentários entre colchetes.]
Por
Rodolfo Kaleb, junho-julho de 2015 [Atualizado
e publicado em janeiro de 2016]
Durante
os últimos anos, a população da Síria estava espremida entre uma
ditadura de décadas, por um lado, e um conjunto de forças burguesas
que queriam formar um novo regime nacional, por outro. Mais
recentemente ela também tem se visto diante do avanço territorial
dos fundamentalistas do Estado Islâmico e de ataques militares
efetuados no país pelos Estados Unidos e outras potências
imperialistas. Dedicamos esse texto a aprofundar algumas questões já
abordadas há algum tempo, em nosso artigo de setembro 2012 (O
Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários)
e a atualizar certos aspectos, levando em conta esses novos
acontecimentos.
Mais
uma vez, frisamos aquilo que a maior parte da esquerda, inclusive
muitos grupos que se reivindicam trotskistas, tem deixado de lado ao
tratar da situação nesse país: a necessidade de uma linha de
independência
de classe
diante das várias forças burguesas que no momento disputam o poder
na região. Os marxistas não caem no mito de uma “revolução”
supostamente incorporada e liderada pelos exércitos “rebeldes”
que combatem o governo circunscritas aos interesses de frações da
burguesia. Os rumos da guerra civil, embora não decididos mesmo
depois de quase quatro anos, apontam a necessidade de formar um pólo
da classe trabalhadora, oposto tanto ao governo Assad quanto às
forças reacionárias que querem derrubá-lo para sua própria
vantagem. De forma semelhante, o mesmo dilema da necessidade de
independência de classe também está centralmente colocado na atual
situação política em Kobane.
O caráter das principais forças em disputa na Síria
O
regime Assad é um regime capitalista de partido único de duas
décadas, que governa uma nação pobre confinada à ordem mundial do
imperialismo. De todas as violações aos direitos humanos que
aconteceram desde o começo da guerra, a maioria veio das mãos do
governo sírio. Ele tem como aliado internacional a Rússia, com quem
tem acordos comerciais relevantes. Da parte da classe trabalhadora,
porém, tal regime ditatorial não merece nenhum apoio político.
Já
a Coalizão Nacional Síria (CNS) tenta administrar as diferentes
unidades do Exército Livre da Síria (ELS), que é um racha das
forças armadas do país. Desde 2011, o ELS ganhou importantes
posições no país, mas muitas foram perdidas de volta para Assad ou
tomadas pelo Estado Islâmico. Em nosso artigo de 2012, nós
explicamos a composição política e militar do CNS/ELS: as ligações
dos seus componentes principais com os imperialistas e o seu programa
burguês. Desde então, o ELS foi pouco a pouco dominado por forças
de orientação religiosa (principalmente os líderes sunitas
insatisfeitos com os aspectos seculares do regime alauita de Assad).
O ELS também passou a operar junto com outras forças, tais quais a
“Frente Islâmica” que se originou em 2014.
Apesar
das ilusões na esquerda de que suas operações contra o regime
Assad constituíam parte da “revolução síria”, deixamos claro
naquele artigo que esses “rebeldes” não são uma força política
que vá trazer conquistas para os trabalhadores sírios, menos ainda
para as minorias nacionais do país.
Os
Estados Unidos não conseguiram uma aliança duradoura com a maioria
dos rebeldes, que não foram considerados “moderados” o
suficiente. Washington tem tomado mais cuidado com seus aliados desde
a desastrosa experiência na Líbia, onde muitas das armas enviadas
acabaram caindo nas mãos de extremistas antiamericanos. Algumas
unidades específicas do ELS, entretanto, receberam significativa
ajuda militar dos Estados Unidos e, nesse momento, Obama já começou
a treinar o seu próprio “grupo rebelde”, o qual deve ser
denunciado enquanto uma tropa terrestre do imperialismo. Conforme
noticiado:
“Os
EUA decidiram fornecer caminhões com metralhadora e rádios para
chamar bombardeios aéreos a alguns rebeldes sírios moderados,
disseram oficiais da Defesa. Mas não foi combinado o alcance de
nenhum bombardeio – um reflexo das complexidades do campo de
batalha na Síria.
….
“O
plano chega enquanto os EUA preparam-se para começar a treinar
rebeldes moderados, que estão travando uma luta em duas frentes
contra os extremistas e o regime sírio. Oficiais da Defesa disseram
que o treinamento vai começar em meados de março, na Jordânia, com
um segundo acampamento previsto para abrir logo depois na Turquia.”
Os
EUA darão a alguns rebeldes sírios a capacidade de chamar
bombardeios, 17 de fevereiro de 2015.
Disponível
em: http://tinyurl.com/kojxzx5
[Janeiro
de 2016: a entrada da Rússia no conflito a partir de outubro 2015,
incluindo tanto ataques aéreos como envio de grandes quantidades de
tropas terrestres – inicialmente favorecendo Assad e posteriormente
dando apoio logístico e militar também a certas forças rebeldes –
complexificou o cenário. Atualmente, tudo aponta para a construção
de um governo de transição que contemple os interesses econômicos
tanto da Rússia quanto dos EUA, bastante distintos, é bom que se
diga, dos interesses dos trabalhadores e do povo sírio.]
Outro
competidor reacionário na guerra civil síria que tem ganhado força
recentemente é o autodenominado Estado Islâmico da Síria e do
Levante (EI). Ele era antes parte de uma mesma operação militar
fundamentalista com o Al-Qaeda na Síria (Frente Al-Nusra). Foi a
Frente Al-Nusra quem rompeu relações com EI no início de 2014,
afirmando que eles eram “intransigentes demais”.
A
essa altura, o EI já tinha tomado importantes posições no Iraque.
Financiado largamente por barões do petróleo muçulmanos dos países
que também estavam dando apoio aos rebeldes, os chamados “Amigos
da Síria” (Turquia, Catar e Arábia Saudita), o EI se beneficiou
de suas ligações com a oposição síria para obter armas e
recrutar combatentes. Chegou ao poder em importantes cidades
iraquianas como ponta de lança de uma revolta sunita contra o
governo xiita apoiado pelos Estados Unidos. A partir de então, o EI
controlava um território maior do que o Al-Qaeda jamais foi capaz.
Muitas das cidades sob seu poder tem uma grande produção
petrolífera, que o EI exporta para financiar seu esforço
expansionista. Ele está em guerra contra o governo iraquiano (que
recebe ajuda de tropas americanas no terreno) com a intenção de
construir um “Califado” sob seu rígido controle. Por volta da
mesma época, o EI reforçou suas posições na Síria e tomou
províncias no desértico leste do país, e toda a região de
fronteira entre o Iraque e a Síria. Ele tem lutado ao mesmo tempo
contra Assad e forças oposicionistas, especialmente unidades do ELS.
O
EI parece ser a mais bem treinada e equipada das forças de oposição
ao governo. Cerca de 8 milhões de pessoas vivem nas cidades que ele
controla nos dois países e o grupo conseguiu estabelecer um tipo de
“economia de guerra” na qual a população fica dependente deles
para obter comida e outras necessidades, o que até agora garantiu
uma colaboração passiva com a sua ocupação. Eles tem perseguido
severamente minorias não-muçulmanas (e mesmo alguns grupos
muçulmanos) e se gabam a respeito de escravizar e vender mulheres de
outras religiões, assim como de massacrar grupos de aldeões
não-muçulmanos. O EI controla cerca de um terço do território
sírio, onde impuseram a Lei Islâmica / Sharia.
Consideramos
o Estado Islâmico uma forma de reação fundamentalista que busca
eliminar mesmo os direitos políticos, sociais e seculares mais
básicos do povo. Se o EI for vitorioso em todo o território sírio,
isso significaria a queda de muitas minorias étnicas e religiosas em
uma condição de escravidão, ou sua simples execução. Um partido
revolucionário de trabalhadores na Síria buscaria defender o povo
oprimido e organizar as massas trabalhadoras das cidades e do campo
contra esses bandidos cruéis. A sua derrota é essencial para os
trabalhadores. Porém, nosso chamado para derrotar o EI não muda
nossa denúncia e oposição à intervenção aérea conduzida pelos
Estados Unidos.
Os
imperialistas não apresentam uma alternativa de melhoria de vida
para o povo sírio e já foram capazes de ações dezenas de vezes
mais bárbaros que as do EI. O crescimento do EI é, em última
instância, um subproduto da sua desastrosa ocupação do Iraque,
apenas para dar um exemplo. Enquanto o governo e a grande mídia
americana expõem as crueldades do Estado Islâmico, escondem os atos
de terror cometidos pelos seus aliados na Síria, que também incluem
muitas atrocidades (sem mencionar o alto número de vítimas e
ferimentos provocados pela morte que cai do céu na forma de
bombardeios).
Nós
não temos nenhuma pena pelas derrotas que os imperialistas sofrerem
no Iraque e na Síria. Não nos esquecemos dos crimes cometidos pelos
imperialistas no Iraque (incluindo as mortes de cerca de 120.000
civis iraquianos) e consideramos sua expulsão do Oriente Médio,
assim como a derrota de suas “tropas terrestres”, como uma
prioridade. Mas apesar do fato de que o EI tem sido o alvo dos
bombardeios imperialistas, a sua conquista de cidades iraquianas e
sírias com objetivo de estabelecer regimes de terror não é nenhuma
forma de “luta anti-imperialista” e sim uma ação reacionária.
As
“boas intenções” de Obama em bombardear o EI para supostamente
salvar minorias na Síria são mentirosas. A intervenção americana
tem o propósito único de garantir seu poder sobre o país. Qualquer
um que duvide das intenções dos EUA (e de outras grandes potências)
na Síria deveria olhar para os “grandes experimentos de
democracia” que se tornaram a Líbia e o Iraque. Os bombardeios
americanos tem a intenção de ganhar tempo e conter o EI (ao mesmo
tempo em que o usa para cansar o regime Assad) enquanto Washington
organiza melhor as forças leais a si no território sírio.
[Janeiro
de 2016: Atualmente, esse parágrafo parece ter se desatualizado
diante da aparente decisão dos EUA, França e Grã-Bretanha de
destruir o EI, pressionados pelos bombardeios russos em defesa de
Assad e pelo alarme mundial com relação aos fundamentalistas.
Porém, na altura em que esse texto foi escrito, tudo indicava que a
estratégia dos EUA girava em torno de “administrar” a situação,
deixando o EI enfraquecer Assad e buscando fortalecer as posições
dos rebeldes mais “moderados”.]
Além
de levar em conta as ameaças dos imperialistas de um lado e do
Estado Islâmico de outro, não se pode perder de vista que uma
revolução proletária na Síria só pode vencer por cima do cadáver
morto da brutal ditadura de Assad. O ditador e seu partido impuseram
a ordem capitalista sobre a classe trabalhadora por décadas, com os
mais brutais métodos. Seria prioritário organizar autodefesas entre
os trabalhadores, especialmente das minorias perseguidas contra os
vários exércitos em disputa, garantindo assim um polo politicamente
independente das forças reacionárias que lutam pelo poder.
A
esquerda sem independência de classe
Os
grupos na esquerda que afirmam defender a vitória de uma inexistente
“revolução síria” contra Assad usam a ausência de um processo
como esse como fachada para apoiar os esforços do Exército Livre da
Síria. O argumento principal é de que muitas das unidades que nele
participam não são subordinadas à Coalizão Nacional Síria.
Seriam, em vez disso, forças populares emergindo das ruas e dos
protestos da Primavera Árabe.
Essa
é a posição, por exemplo, do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU), cuja seção no Brasil é a corrente Insurgência,
do PSOL. Em seu site internacional, foi publicada uma entrevista com
um membro de um desses grupos aderentes do ELS e que se reivindicaria
marxista. Quando foi perguntado sobre a cooperação com outras
unidades do ELS, o combatente respondeu:
“Existe
cooperação e coordenação, mas de forma limitada. Por um lado por
conta das diferentes visões e objetivos, ou disparidades entre
posições devido à localização geográfica onde os camaradas
estão lutando e a natureza das outras organizações. Por outro,
essas organizações em geral não aceitam ninguém mais....”
“Nossa
falta de armas nos põe em uma situação de fraqueza”,
18 de janeiro de 2015.
Disponível
em: http://tinyurl.com/nhjea3b
Não
surpreende a dificuldade de coordenação com as outras unidades do
ELS, já que muitas delas são lideradas por oficiais leais e
subordinados ao CNS, e através deste aos seus patrões
imperialistas. Isso para não mencionar aquelas unidades que
mencionamos, que recebem treinamento e armas diretamente dos
imperialistas. Isso sem esquecer os vários grupos islâmicos que
também estão sob o teto do ELS.
O
ELS é certamente um exército heterogêneo. Mas a pergunta que o
site do SU não fez a esses combatentes, e que deveria ser o primeiro
questionamento é: por que essa organização (que o SU considera
“marxista revolucionária”) está trabalhando lado a lado com
esses tipos? Por que eles, em vez disso, e já que afirmam
representar a classe trabalhadora síria, não organizam uma brigada
independente, oposta aos elementos que estão mancomunados com os
imperialistas para vender o país caso consigam derrotar Assad?
De
certa forma, o dilema desses combatentes é o mesmo dilema do SU e
das demais correntes que apoiam os rebeldes contra Assad. Não querem
defender uma posição proletária independente do CNS e do ELS e só
veem possibilidade imediata de derrubar o regime junto com essas
forças reacionárias. Por isso, abandonam qualquer pretensão de uma
política marxista e passam a embelezar a natureza e o programa do
ELS, ainda que criticando sua liderança.
Conclusão
muito semelhante é compartilhada por outros grupos que dizem
reivindicar o trotskismo, como aquela da morenista Unidade
Internacional dos Trabalhadores, cuja seção brasileira é a
corrente CST, do PSOL, com a qual polemizamos de forma mais extensa
em artigo de outubro de 2012 (O
Morenismo e a Posição da CST/UIT na Síria),
ou como pela também morenista Liga Internacional dos Trabalhadores
(LIT – dirigida pelo PSTU
brasileiro).
Apesar
da aderência inevitável de elementos iludidos por uma ideologia
pretensamente “democrática”, reafirmamos que o ELS é, como um
todo, controlado por oficiais do CNS e outras forças burguesas. Não
há nada para ser ganho para a classe trabalhadora ao ajudar esse
exército. A não ser que o SU e outros grupos, como a UIT ou a LIT,
acreditem em algum tipo de “dinâmica” mágica que vá colocar a
classe trabalhadora no poder ou numa posição melhor no instante em
que Assad cair pelas mãos dos rebeldes ou do imperialismo. Já vimos
esse filme na Líbia, na Ucrânia e em muitas outras ocasiões em que
tais grupos apoiaram o “movimento de massas” com uma liderança
reacionária.
A
questão curda e a batalha por Kobane
No
cenário já complexo que é a guerra civil na Síria, as coisas
ficam ainda mais densas ao levar em conta o elemento curdo. O
Curdistão é a maior nação sem Estado no mundo. Estamos falando de
cerca de 30 milhões de pessoas divididas pelo território da
Turquia, Irã, Iraque, Armênia e uma pequena região no norte da
Síria (Rojava). Tal ordem de coisas é um legado da prática de
“dividir para dominar” do imperialismo britânico após a queda
do Império Otomano.
Os
marxistas defendem os direitos nacionais dos curdos, incluindo o
direito à autodeterminação, ao uso do idioma em todas as esferas
da vida e contra todas as formas de segregação. Mas isso não
significa que consideramos a separação territorial das regiões
curdas como uma “solução” para os problemas dos trabalhadores
dessa nacionalidade. Tomaríamos o lado curdo em uma guerra pela
independência ou por autonomia regional (incluindo o apoio militar)
se esse for o desejo desse povo em qualquer momento.
Ao
mesmo tempo, a separação nacional é, para os marxistas, um
interesse subordinado à luta proletária. Há questões políticas
de maior prioridade, como a independência de classe dos
trabalhadores e a defesa das nações oprimidas contra os ataques
imperialistas. Eis um exemplo ilustrativo. Em 2003, quando os EUA
atacaram o Iraque, os líderes nacionalistas burgueses do Curdistão
iraquiano apoiaram a invasão imperialista contra o regime de Saddam
Hussein, em busca de promessas de maior autonomia regional.
Defendemos
todo e qualquer ganho de autonomia para a população curda. Mas
quando o Peshmerga (o exército dos curdos iraquianos) estava lutando
sob comando do exército americano, não era uma força pela
independência curda contra Bagdá, mas um braço do projeto
imperialista de subjugar toda a região. Assim, nos oporíamos aos
esforços dos capitalistas curdos para apoiar a invasão
imperialista, ao mesmo tempo em que seguiríamos defendendo os
direitos nacionais curdos.
Hoje,
uma situação parecida ressurge no Iraque, com a coalizão liderada
pelos EUA contra o Estado Islâmico. Os principais partidos políticos
curdos no território iraquiano, KPD (Partido Democrático Curdo) e
PUK (União Patriótica do Curdistão), apesar de sua suposta
rivalidade, usam sua posição à frente do governo regional no norte
do Iraque para apoiar os imperialistas.
Mas
enquanto no Curdistão iraquiano a cena é dominada pelos capachos
imperialistas, na Síria a força política mais influente entre a
população curda é atualmente o Partido da União Democrática
(PYD), que é o associado sírio do antes maoista Partido dos
Trabalhadores do Curdistão (PKK), que opera na Turquia. Em 2012, as
tropas leais a Assad se retiraram completamente das regiões curdas,
o território conhecido como Rojava. Não está claro se devido a
limitações militares ou como uma tentativa demagógica de ganhar
apoio dos curdos, ou ambos. E desde então Rojava basicamente ficou
sob controle do PYD. Através de sua organização militar, as
Unidades de Proteção Popular (YPG), o PYD entrou em confrontos com
ambos o regime Assad e a oposição, em diferentes ocasiões. Mas
desde que o avanço do Estado Islâmico no norte começou, o YPG tem
entrado consistentemente em choque com ele.
As
investidas do EI no território sírio colocaram-no em conflito com
os curdos em julho de 2014 em Kobane (um dos três cantões sob o
governo do PYD próximos da fronteira com a Turquia). Isso chamou
atenção mundial e a resistência curda ganhou vasta simpatia,
ficando conhecidos como os “revolucionários que enfrentam o Estado
Islâmico”. O EI finalmente foi derrotado na região no começo de
2015 através de uma combinação da luta incansável dos curdos (que
estiveram sempre em inferioridade técnica) e bombardeios
imperialistas. Kobane ficou sitiada por meses, durante os quais
muitos grupos na esquerda (especialmente alguns anarquistas) falavam
de um caráter revolucionário da resistência curda.
O
PYD é um partido fundado em 2003 por ativistas simpatizantes do PKK
na Síria. Ele era considerado pelo governo sírio como um fator de
instabilidade devido a seu apoio popular e por operações
clandestinas nas regiões curdas. Sua principal fonte de orientação
ideológica é o PKK, que foi criado em 1978 como um grupo maoista
dedicado à resistência armada contra a opressão da população
curda na Turquia e que tem uma longa história de resistência contra
o governo.
Mas,
aparentemente, o PKK não é mais um aderente do maoismo, com suas
práticas stalinistas de perseguição a oposicionistas internos e um
programa de “guerra popular” cambaleando entre um programa
democrático burguês de “Nova Democracia” e a perspectiva de
reproduzir um regime burocrático de economia estatizada, como a
China de Mao. De acordo com muitos relatos, desde a prisão de
Abdullah Ocalan (seu líder histórico) em 1999, o PKK tem passado
por uma transformação programática rumo ao que é descrito pelo
próprio Ocalan como “Confederalismo Democrático”. Esse é um
ponto de vista inspirado por autores libertários e que busca a
construção de “autogovernos populares” sem Estado, em cada
localidade.
O
PKK ainda é considerado pela OTAN e pelo governo turco como uma
“organização terrorista” e os marxistas por todo o mundo tem o
dever imperativo de defender o grupo contra todos os ataques vindo do
brutal regime de Erdogan. Com exceção de alguns breves períodos de
trégua (o último dos quais vem desde 2013), o PKK tem continuamente
lutado contra o regime turco por autonomia para as regiões curdas.
Mas embora seja difícil dizer quão consolidado é esse giro (é
preciso lembrar que o PKK segue uma organização clandestina), ele
parece ter mudado definitivamente a feição do grupo.
Para
os trotskistas, os trabalhadores e camponeses precisam construir um
poder baseado em suas próprias forças para esmagar a dominação
militar, política e econômica da burguesia e impedir suas
tentativas de retornar ao poder após uma insurreição vitoriosa.
Esse autêntico “governo de trabalhadores” deve abranger todo o
território e se basear em representantes eleitos democraticamente
pelos proletários e camponeses (e revogáveis pelas assembleias que
os elegeram). Essa é a fórmula capaz de equilibrar a natureza local
da gestão democrática direta com os interesses de grande escala da
classe trabalhadora em todas as áreas.
Por
último, mas não menos importante, esse governo deve dar apoio
internacionalista e suporte material e político aos proletários dos
outros países nas lutas para derrotar as “suas” burguesias. O
socialismo não pode ser alcançado em bases nacionais e, em última
instância, nenhum governo de trabalhadores pode sobreviver isolado
em um mundo dominado pelo imperialismo. O programa político do
PKK/PYD parece passar por cima da necessidade de construir essa
“ditadura proletária” baseada em uma economia coletivizada e no
poderio militar centralizado dos trabalhadores.
Como
foi mencionado, o PYD tem o controle militar da região de Rojava.
Ele adotou uma “Carta do Contrato Social de Rojava” no início de
2014 e esse documento constitucional não faz nenhuma menção ao
socialismo, controle coletivo dos meios de produção ou democracia
operária. Trata-se de uma combinação confusa de participação
comunitária e manutenção da propriedade privada. O artigo 41
assegura que “Todos tem o direito de possuir propriedades e a posse
pessoal é garantida”, enquanto o artigo 42 diz que o sistema
econômico busca “garantir a economia participativa enquanto
promove a competição de acordo com o princípio da gestão
democrática ‘A cada um de acordo com seu trabalho’.”
[Janeiro
de 2016: Com a derrota do EI, o PYD se estabeleceu em uma região
onde todos os partidos e governos burgueses haviam sido derrotados ou
se retirado. Ele não é um partido burguês, mas uma organização
baseada na mobilização de trabalhadores e camponeses da região. As
condições são as mais propícias para o estabelecimento de um
governo proletário, com controle democrático dos trabalhadores e
camponeses sobre os meios de produção, a política e o exército.
No entanto, vemos que o PYD não tem clareza sobre a natureza do
regime que ele quer construir. Embora tenha um discurso democrático,
a manutenção da propriedade capitalista coloca limites claros de
desigualdade e de democracia na sociedade. Diante do que aconteceu
até o momento, não existe nenhuma garantia de que o governo do PYD
romperá com a burguesia de forma definitiva. Os lutadores da região
devem lutar por uma direção revolucionária e combater as
vacilações da atual.]
Durante
e após a batalha contra o Estado Islâmico em Kobane, o PYD também
propagou perigosas ilusões nas unidades Peshmerga do governo
regional curdo no Iraque (das quais recebeu armas) e na intervenção
aérea dos EUA. Eles soltaram uma declaração pública “agradecendo”
a ambos por sua luta contra o EI, durante a qual o PYD deu aos EUA
aconselhamento militar tático (onde realizar os bombardeios). Um
líder do PYD, Saleh Muslim, expressou essa postura em várias
declarações à imprensa:
“De
acordo com Muslim, a coalizão internacional ‘salvou as vidas de
muitos civis’ na sua guerra contra o EI.… Ele também agradeceu à
coalizão internacional liderada pelos EUA por apoiar os curdos em
sua dificuldade e por ajudar as forças do YPG a resistirem ao grupo
radical EI. ‘Tais operações reforçam a relação entre os curdos
e os Estados que defendem a democracia e a paz’, concluiu Muslim.”
“Curdos
sírios instam coalizão liderada pelos EUA a intensificar os ataques
contra o EI em Kobane”, 13 de outubro de 2014.
Disponível
em: http://tinyurl.com/pkzaufb
Apesar
disso, acreditamos que os marxistas deveriam defender Kobane contra o
avanço dos reacionários fundamentalistas do EI. O que os
trabalhadores e militantes com intenções revolucionárias em Rojava
precisam urgentemente é de uma orientação política que seus
líderes não tem a oferecer: a construção de um poder direto dos
trabalhadores. Mais importante, é preciso garantir que não se
desenvolvam expectativas ou ilusões no caráter dos governos
burgueses do Curdistão iraquiano ou nos bombardeios americanos.
Os
EUA tinham a intenção de conter o avanço do EI em Kobane (na
fronteira com a Turquia) para os seus próprios propósitos
reacionários, e não “ajudar” o povo curdo. Tampouco o governo
americano está entre os defensores da “democracia e paz” no
mundo. Não esqueçamos que Washington é um grande aliado do regime
turco de Erdogan, que durante todo o tempo fez de tudo para impedir
que o PYD recebesse ajuda das bases do PKK na Turquia. Não
condenamos o PYD por ter conseguido armas de qualquer fonte que as
estivesse oferecendo (desde que sem imposição de condições). E
ele certamente tinha o direito de se beneficiar taticamente do fato
de que o EI estava sendo alvo dos imperialistas, desde que tivesse
clareza sobre a natureza dos bombardeios.
O
sectarismo de parte da esquerda contra os lutadores de Kobane
Alguns
grupos na esquerda se basearam nas posições oportunistas da
liderança do PYD para justificar tomar
o lado do Estado Islâmico (!!!) em
Kobane. Esse é o caso da seita degenerada (mal) disfarçada de
organização trotskista que é a Liga Espartaquista dos EUA. Em uma
edição do seu jornal, eles expuseram suas razões:
“Forças
do governo iraquiano e peshmerga curdos no Iraque estão novamente
conduzindo operações militares conjuntas com os EUA, como fizeram
por anos sob a ocupação. Mais recentemente, nacionalistas curdos
sírios também selaram uma aliança traiçoeira com os EUA na
batalha por Kobane no norte da Síria, agindo como auxiliares de
bombardeios dos imperialistas e coordenando movimentos militares como
um todo. O fato de que todas essas forças são ‘tropas terrestres’
para a intervenção imperialista significa que os marxistas
revolucionários [sic] tem seu lado militar com o EI quando ele
atacar os imperialistas e seus agentes, incluindo os nacionalistas
curdos sírios, o peshmerga, o governo de Bagdá e suas milícias
xiitas.”
Abaixo
a guerra dos EUA contra o EI!, 31 de outubro de 2014.
Disponível
em: http://www.icl-fi.org/english/wv/1055/isis.html
Em
sua investida para conquistar Kobane, o Estado Islâmico não estava
lutando contra um reduto imperialista, já que não havia quaisquer
tropas dos EUA no terreno. O YPG era a única força combatendo os
fundamentalistas com armas nas mãos em Kobane e, apesar das posições
vacilantes de sua direção, ele não pode ser seriamente considerado
uma “tropa terrestre” dos imperialistas. O YPG resistiu ao cerco
do EI em Kobane por muitos meses mesmo antes de os imperialistas se
envolverem.
Os
revolucionários devem criticar as ilusões propagadas por Muslim e
pelo seu “agradecimento” cheio de ilusões à coalizão
internacional. Mas o que está em questão para determinar que lado
tomar em Kobane é se essas posições ou a colaboração militar
tática com os imperialistas tornam o PYD uma força subordinada aos
EUA em seus esforços para subjugar a Síria.
Acreditamos
que o exército americano se aproveitou do conflito em Kobane para
bombardear o EI, mas não tinha a pretensão de usar o PYD, que ele
ainda considera uma organização terrorista, como uma alavanca para
controlar o norte da Síria. Afinal, terminada a batalha, os EUA não
foram capazes de ter qualquer controle real sobre Rojava. O PYD, por
sua vez, estava se beneficiando dos bombardeios dos EUA, mas não
está integrado e subordinado aos esforços militares dos
imperialistas na região.
Portanto,
a batalha por Kobane não consistiu em agentes dos EUA lutando contra
o Estado Islâmico (como quer a Liga Espartaquista), mas sim uma
força de resistência curda coordenada (mas não subordinada) com
bombardeios americanos, lutando contra os reacionários
fundamentalistas. Em tal luta, os revolucionários tinham um lado –
com o PYD/YPG contra o EI, enquanto ao mesmo tempo diziam aos
trabalhadores e militantes no Curdistão sírio a não confiar que os
EUA ou o Peshmerga pudessem ser considerados, mesmo momentaneamente,
seus “aliados”.
O
que essa posição demonstra é que a Liga Espartaquista perdeu
completamente seu senso de proporção (se é que tinha algum). A
vitória do YPG em Rojava não é a mesma coisa que a vitória dos
rebeldes na Líbia em 2011. Não se tratou de uma queda de governo
orquestrada pelos imperialistas para colocar um fantoche em seu
lugar. O resultado foi a manutenção no poder de um partido curdo
com bases populares que havia subido ao poder como fruto da própria
dinâmica da guerra civil. A resistência vitoriosa contra o EI foi
um contraponto importante para evitar o avanço da reação
fundamentalista.
Por
resistências proletárias em meio à guerra civil
Diante
do elemento de sectarismo religioso presente nas guerras que se
desenrolam no Iraque e na Síria (envolvendo a rivalidade
sunita/xiita) e o derramamento de sangue de ambos os lados, existe
espaço para o surgimento de uma resistência não-sectária da
classe trabalhadora contra esses crimes. Se acompanhada do impulso
revolucionário de expulsar os imperialistas do Oriente Médio,
impedir a vitória dos reacionários fundamentalistas e defender os
curdos e outras minorias étnicas, essa posição tem potencial para
desenvolver-se rapidamente entre os trabalhadores que não veem
nenhuma alternativa entre os competidores pelo poder.
Não
existe na Síria nenhum partido de massas da classe trabalhadora (nem
mesmo reformista) devido a décadas de opressão do regime de Assad
sobre o país. A única federação sindical legalizada é
inteiramente submetida à estrutura de Estado controlada pelo Partido
Socialista Árabe Baath (o partido do regime). Uma posição de
contraste com as que estão postas pela guerra iria imediatamente
ganhar simpatia da classe trabalhadora, mesmo se inicialmente
representada apenas por um grupo pequeno de quadros programaticamente
sólidos e dedicados. Entretanto, embelezar qualquer das forças
principais da disputa só pode levar a desastres.
Ações
de solidariedade operária sem fronteiras são uma pedra de toque do
trotskismo e seriam essenciais para preparar os trabalhadores e
camponeses sírios, iraquianos, turcos e curdos contra “suas”
respectivas classes dominantes e as maquinações ferozes dos
imperialismos. A
única forma de assegurar uma paz de longo prazo na região é
através de revoluções socialistas vitoriosas que ponham fim às
rivalidades reacionárias entre clãs capitalistas competidores e sua
constante dependência de alianças traiçoeiras com os
imperialistas.
Além
disso, é preciso começar o quanto antes a construção de um
partido revolucionário dos trabalhadores na Síria. Junto a um
programa socialista completo de controle operário sobre as
principais indústrias e revolução agrária no campo, uma
organização trotskista na Síria também defenderia um conjunto de
demandas democráticas contra o regime e seus adversários
reacionários. Isso demonstraria o desejo sem compromissos dos
revolucionários em construir uma democracia proletária, em oposição
às falsas promessas “democráticas” dos imperialistas.