George
Novack
[Esta obra, produzida em 1957 por George
Novack quando era dirigente do então trotskista Socialist Workers Party (SWP – Partido
dos Trabalhadores Socialistas) norte-americano, ofereceu a gerações de
marxistas uma análise mais profunda sobre a importância da Lei do
Desenvolvimento Desigual e Combinado ao longo da história das sociedades
humanas. Publicamos aqui, não como uma forma de adesão acrítica a todos os
argumentos de sua formulação (alguns dos quais bastante controversos), mas sim
como reconhecimento de sua importante explicação deste aspecto da teoria
marxista. Esta versão foi copiada daquela disponível no Marxists Internet
Archive:
http://www.marxists.org/portugues/novack/1968/lei/cap01.htm#ti1].
http://www.marxists.org/portugues/novack/1968/lei/cap01.htm#ti1].
O Curso Desigual da História
Este ensaio
pretende dar uma explicação compreensível e coerente de uma das leis
fundamentais da história humana, a lei do desenvolvimento desigual e combinado.
É a primeira vez, em minha opinião, que se tenta fazer isto. Procurarei
demonstrar o que é esta lei, como funcionou nas principais etapas da história e
também como pode clarificar alguns dos mais importantes fenômenos sociais e
problemas políticos de nossa época.
A Dupla Natureza da Lei
A lei do
desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla
aplicação no processo histórico. Tem um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma
fusão de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere
às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação
concreta destes fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico.
Os
aspectos fundamentais da lei podem ser brevemente exemplificados da seguinte
maneira: O fato mais importante do progresso humano é o domínio do homem sobre
as forças de produção. Todo avanço histórico se produz por um crescimento mais
rápido ou mais lento das forças produtivas neste ou naquele segmento da
sociedade, devido às diferenças nas condições naturais e nas conexões
históricas. Essas disparidades dão um caráter de expansão ou compressão a toda
uma época histórica e conferem distintas proporções de desenvolvimento aos
diferentes povos, aos diferentes ramos da economia, às diferentes classes,
instituições sociais e setores da cultura. Esta é a essência da lei do
desenvolvimento desigual. Essas variações entre os múltiplos fatores da
história dão a base para o surgimento de um fenômeno excepcional, no qual as
características de uma etapa inferior de desenvolvimento social se misturam com
as de outra, superior.
Essas
formações combinadas; têm um caráter altamente contraditório e exibem
acentuadas peculiaridades. Elas podem desviar-se muito das regras e efetuar tal
oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e
capacitar povos que eram atrasados a superar, durante certo tempo, os mais
avançados. Esta é a essência da lei do desenvolvimento combinado. É óbvio que
estas duas leis, estes dois aspectos de uma só lei, não atuam ao mesmo nível. A
desigualdade do desenvolvimento precede qualquer combinação de fatores desproporcionalmente
desenvolvidos. A segunda lei cresce sobre a primeira e depende desta. E, por
sua vez, esta atua, sobre aquela, afetando-a no seu posterior funcionamento.
O Enquadramento Histórico
A
descoberta e formulação desta lei é o resultado de mais de dois mil e
quinhentos anos de investigações teóricas sobre as formas de desenvolvimento
social. As primeiras observações sobre ela foram feitas pelos filósofos e
historiadores gregos. Mas a lei como tal foi levada a primeiro plano e
efetivamente aplicada, pela primeira vez, pelos fundadores do materialismo
histórico, Marx e Engels, há aproximadamente um século. Esta lei é uma das
maiores contribuições do marxismo à compreensão científica da história e um dos
mais poderosos instrumentos de análise histórica.
Marx e
Engels, por sua vez, derivaram a essência desta lei da filosofia dialética de
Hegel. Hegel utilizou a lei em suas obras sobre a história universal e a
história da filosofia, porém sem lhe dar um nome especial nem reconhecimento
explícito.
Da mesma
maneira, muitos pensadores dialéticos, antes e depois de Hegel, utilizaram esta
lei em seus estudos e aplicaram-na mais ou menos conscientemente, para a
solução de complexos problemas histórico-sociais e políticos. Os mais
destacados teóricos do marxismo, desde Kautsky e Luxemburgo até Plekhanov e
Lênin, reconheceram a sua importância, observaram seu funcionamento e consequências
e usaram-na para a solução de problemas que confundiam a outras escolas de
pensamento.
Um Exemplo de Lênin
Citemos um
exemplo de Lênin, que baseou nesta lei sua análise da primeira etapa da
revolução russa de 1917. Em suas “Cartas de Longe” escrevia, da Suíça, aos seus
colaboradores bolcheviques:
“O fato de que a revolução (de
fevereiro) tenha ocorrido tão rapidamente... deve-se a uma conjuntura histórica
incomum, na qual se combinavam, de maneira ‘altamente favorável’, movimentos
absolutamente distintos, interesses de classe absolutamente diferentes e
tendências políticas e sociais absolutamente opostas”. (Collected Works, Book
I, pág. 31).
O que
havia ocorrido? Um setor da nobreza e dos proprietários rurais russos, a
oposição burguesa, os intelectuais radicais, os operários e soldados
insurretos, junto com os aliados do imperialismo - forças sociais absolutamente
antagônicas - haviam se unido momentaneamente contra a autocracia czarista.
Cada qual pelas suas próprias razões. Todas juntas sitiaram, isolaram e derrubaram
o regime dos Romanov. Essa extraordinária e irrepetível conjuntura de
circunstâncias e combinações de forças surgiu da totalidade de desigualdades
prévias do desenvolvimento histórico russo por seus largamente adiados e não
resolvidos problemas sociais e políticos exacerbados pela primeira guerra
imperialista mundial.
As
diferenças, que haviam desaparecido superficialmente na ofensiva contra o
czarismo, se manifestaram imediatamente e não passou muito tempo até que esta
aliança de fato, de forças opostas por natureza, se desintegrasse e rompesse.
Os aliados da revolução de fevereiro de 1917 se transformaram nos inimigos
irreconciliáveis de outubro de 1917.
Como se
chegou a isto? A queda do czarismo, na época, produziu uma desigualdade nova e
superior, na situação, que pode ser sentida na seguinte fórmula: por um lado,
as condições objetivas estavam maduras para a tomada do poder pelos operários;
por outro, a classe operária russa - e, sobretudo, sua direção - não haviam
apreciado corretamente a situação real nem experimentado, a nova relação de
forças. Ou seja, subjetivamente, não estavam amadurecidas para realizar a
tarefa suprema. Pode-se dizer que o desenvolvimento da luta de classes, de
fevereiro a outubro de 1917, consistiu no reconhecimento crescente, por parte
da classe operária e seus líderes revolucionários, do que era preciso fazer,
bem como das condições objetivas e da preparação subjetiva. A brecha aberta
entre eles foi preenchida na ação pelo triunfo dos bolcheviques na Revolução de
Outubro, que combinou a conquista operária do poder com o mais amplo levante
camponês.
O Formulador da Lei
Este processo
está totalmente explicado por Trotsky em sua “História da Revolução Russa”. A
própria revolução russa foi o exemplo mais claro do desenvolvimento desigual e
combinado na história moderna. Em sua análise clássica deste acontecimento,
Trotsky deu ao movimento marxista a primeira formulação explícita da lei.
Trotsky,
como teórico, é, célebre sobretudo pela formulação da teoria da Revolução
Permanente. Contudo, sua exposição da lei do desenvolvimento desigual e
combinado poderia ser comparada àquela em importância. Trotsky não só deu nome
a essa lei, como também foi o primeiro que a expôs em seu pleno significado e lhe
deu expressão acabada.
Estas duas
contribuições à compreensão científica dos movimentos sociais estão, de fato,
intimamente ligadas. A concepção de Trotsky da Revolução Permanente resultou de
seu estudo das peculiaridades do desenvolvimento histórico russo, à luz dos
novos problemas que se apresentaram ao socialismo mundial na época do
imperialismo. Esses problemas eram particularmente agudos e complexos em países
atrasados, onde a revolução democrático-burguesa não tinha ocorrido, e exigiam
a solução de suas tarefas mais elementares em um momento em que estava colocada
a revolução proletária. Os frutos de suas ideias sobre esta questão, confirmados
pelo desenvolvimento real da Revolução Russa, prepararam e estimularam sua subsequente
elaboração da lei do desenvolvimento desigual e combinado.
Certamente,
a teoria de Trotsky da Revolução Permanente é a aplicação mais frutífera desta verdadeira
lei aos problemas cruciais da luta de classes internacional de nosso tempo -
época de transição da dominação capitalista ao mundo socialista - e oferece o
mais alto exemplo de seu penetrante poder. Contudo, a lei é aplicável não
apenas aos acontecimentos revolucionários da época presente como também, como
veremos, a toda evolução social. Possui também aplicações mais amplas.
Desenvolvimento Desigual na Natureza
Deixando
de lado o enquadramento histórico do qual surgiu a lei do desenvolvimento desigual
e combinado, passemos agora à análise do alcance de sua aplicação.
Embora
tenha se originado do estudo da história moderna, a lei do desenvolvimento
desigual e combinado tem raízes em acontecimentos comuns a todos os processos
de crescimento, tanto na natureza como na sociedade. Os investigadores
científicos enfatizaram o prevalecimento das desigualdades dominantes em muitos
campos. Todos os elementos constituintes de um objeto, todos os aspectos de um
acontecimento, todos os fatores de um processo em desenvolvimento não se
realizam na mesma proporção ou em igual grau. Mais ainda, sob diferentes
condições materiais, as mesmas coisas exibem diferentes proporções e graus de
crescimento. Qualquer camponês ou trabalhador urbano sabe disso.
Em “Life
of the Past”, G. G. Simpson, uma das mais notáveis autoridades em matéria de
evolução, desenvolve este mesmo ponto, dizendo:
“O mais importante a respeito das
proporções da evolução é que variam enormemente e que as mais rápidas delas
parecem ao mesmo tempo as mais lentas para os seres humanos (incluindo os
paleontólogos, poderia dizer-se). Se seguirmos uma linha de filogenia em seu
registro fóssil, é quase certo que verificaremos que distintos caracteres e
partes evoluem em proporções bastante diferentes e, em geral, que nenhuma parte
evolui por longo tempo na mesma proporção. O cérebro do cavalo evolui
rapidamente enquanto o resto do corpo muda muito pouco. A evolução do cérebro é
muito mais rápida, durante um espaço de tempo relativamente curto, do que em qualquer
outro momento. A evolução do pé fica praticamente estacionada durante toda a
evolução do cavalo, mas em três oportunidades sofre mudanças relativamente
rápidas em seu mecanismo”.
“As proporções da evolução também
variam muito de uma família a outra, e igualmente entre famílias ligadas. Há
uma série de animais atualmente existentes que mudaram muito pouco em longos
períodos de tempo: um pequeno branquiópode chamado Lingula, por cerca de 400
milhões de anos; o Limidus, o ‘caranguejo ferradura’ - mais um escorpião que um
caranguejo -, em 175 milhões de anos ou mais; o Esphenodon, um réptil parecido
a uma lagartixa, agora confinado à Nova Zelândia, por cerca de 15 milhões de
anos; o Didelphis, um gambá americano, por cerca de 75 milhões de anos. Estes e
outros animais, para os quais a evolução se deteve há muito tempo, tiveram que
evoluir todos numa proporção comum relativamente rápida.”
“Há, por outro lado, diferentes
características de proporções nos distintos grupos. A maior parte dos animais
terrestres evoluiu mais rápido que a maioria dos aquáticos - esta generalização
não contradiz o fato de que alguns animais aquáticos tenham evoluído mais
rápido que alguns terrestres.” (pág. 137-138.)
A evolução
de uma ordem inteira de organismos passou, durante um ciclo completo, por uma
fase inicial de crescimento lento, restrito, seguido por um período mais curto
mas intenso de “expansão explosiva”, voltando a cair em uma prolongada fase de
mudanças menores.
Em “O
Significado da Evolução” (pág. 72-73), G. G. Simpson assinala:
“O tempo de expansão rápida, alta
variabilidade e começo de radiação adaptativa... são períodos que aumentam as
oportunidades que se apresentam aos grupos capazes de continuá-la. Tal
oportunidade para uma expansão explosiva se abriu aos répteis quando evoluíram,
ao ponto de ficarem independentes da água como meio de vida e passarem a viver
na terra, na árida vida dos vertebrados. Quando um ‘período mais tranquilo,
posterior à radicação, se completou’, o grupo pode entrar indulgentemente no
gozo progressivo da conquista obtida”.
A evolução
de nossa própria espécie logrou, através da primeira fase de tal ciclo, entrar
na segunda. Os antecessores animais imediatos do gênero humano passaram por um
prolongado período de crescimento restrito, como o demonstra o seu pequeno
cérebro, comparado a outros. O gênero humano atingiu a sua fase de “expansão
explosiva” só no último milhão de anos, aproximadamente, após o primata do qual
descendemos ter adquirido os necessários poderes sociais. Contudo, o posterior
desenvolvimento do gênero humano não duplicou o seu cicio de evolução animal,
porque o crescimento da sociedade provém de uma base qualitativamente diferente
e é governado por suas leis específicas.
A evolução
dos distintos organismos humanos é marcada por uma considerável irregularidade.
O crânio desenvolveu suas atuais características entre nossos antecessores
símios, muito antes das nossas mãos articuladas com o polegar oposto. Somente
depois de nossos antecessores terem adquirido a postura ereta e as mãos para
trabalhar, é que o cérebro dentro do crânio desenvolveu as suas atuais
proporções e complexidades.
O que é
válido para ordens inteiras e para espécies de animais e plantas também o é
para espécimes individuais. Se a igualdade prevalecesse no crescimento
biológico, cada órgão do corpo poderia desenvolver-se simultaneamente e no
mesmo grau de proporções, mas tão perfeita simetria não existe na vida real. No
crescimento do feto humano, alguns órgãos aparecem e amadurecem antes dos
outros. A cabeça e o pescoço formam-se antes dos braços e pernas, o coração na
terceira semana e os pulmões mais tarde. A culminação de todas estas
irregularidades se manifesta nos recém-nascidos, que são gerados em diferentes
condições, com deformações e em distintos intervalos entre a concepção e o
nascimento. O período de nove meses de gestação não passa de uma média estatística.
A data do nascimento pode variar dias, semanas ou meses dessa média. O sinus
frontal, um desenvolvimento tardio que só possuem os primatas e os homens, não
se dá nos jovens humanos e sim depois da puberdade e, em muitos casos, nunca
chega a ocorrer.
A Evolução Desigual das Sociedades
Primitivas
O
desenvolvimento da organização social e das estruturas sociais particulares
exibe desigualdades não menos pronunciadas que a história biológica dos
antecessores: da raça humana. Os diversos elementos da existência social
apareceram em tempos diferentes, evoluíram em proporções enormemente distintas
e se desenvolveram, sob distintas condições, em graus diferentes. Os
arqueólogos dividem a história humana em idade da Pedra, do Bronze e do Ferro,
em função dos principais materiais usados na fabricação de ferramentas e armas.
Essas três etapas de desenvolvimento tecnológico tiveram imensas diferenças
temporais de duração. A Idade da Pedra durou cerca de novecentos mil anos; a
Idade do Bronze, de três a quatro mil anos A.C.; a Idade do Ferro tem menos de
quatro mil anos. Contudo, os diversos grupos do gênero humano atravessaram
essas etapas em diversas épocas, em várias partes do mundo. A Idade da Pedra
acabou por volta de 3.500 A.C. na Mesopotâmia; cerca de 1.600 A.C. na
Dinamarca; em 1492 na América e ainda não se encerrara em 1.800 na Nova
Zelândia.
Uma
desigualdade parecida pode ser assinalada na organização social. A etapa de
selvageria, baseada na coleta de ervas alimentares, caça e pesca, estende-se
por muitas centenas de milhares de anos, ao passo que a barbárie, baseada na
criação de animais e no cultivo de cereais, data de oito mil anos A.C.. A
civilização tem menos de seis mil anos de existência.
A produção
regular, ampla e crescente de alimentos produziu um avanço revolucionário no
desenvolvimento econômico, e elevou a produção alimentícia das aldeias muito
acima daquela das tribos atrasadas, que continuavam subsistindo com base na
coleta de alimentos. A Ásia foi o lugar de nascimento da domesticação de animais
e da horticultura. É incerto qual desses ramos da produção se desenvolveu
antes, mas os arqueólogos descobriram remanescentes de comunidades camponesas
mistas, com os dois tipos de produção de alimentos, que remontam a oito mil
anos A.C.
Existem
tribos puramente pastoris que dependem exclusivamente do rebanho de animais
para a sua existência, como também povos completamente agrícolas, cuja economia
está baseada no cultivo de cereais ou tubérculos.
A cultura
desses grupos especializados tem um desenvolvimento unilateral, em consequência
de seu tipo particular de produção dos meios básicos de vida. O modo de
subsistência puramente pastoril não tem, porém, as potencialidades inerentes ao
desenvolvimento agrícola. As tribos pastoris não podem incorporar na sua
economia os tipos mais elevados de produção de alimentos, em qualquer escala,
sem abandonar e mudar inteiramente seu modo de vida. Isto acontece
especialmente depois da introdução, do arado, que supera as técnicas de
queimada e de semeadura da horticultura. Não podiam desenvolver uma divisão
extensa do trabalho nem avançar da aldeia à cidade enquanto continuassem como
simples guardadores do seu rebanho de gado.
A
superioridade inerente da agricultura sobre a criação de gado é demonstrada
pelo fato de que as populações densas e as mais avançadas civilizações, como a
asteca, a inca ou a maia o provaram, se desenvolveram com base na agricultura.
Os
agricultores puderam incorporar facilmente a domesticação de animais; ao seu
modo de produção, mesclando ou combinando o cultivo do alimento com o pastoreio
de animais, assim como transferindo animais de tração à tecnologia da
agricultura, com a invenção do arado.
Foi a
combinação da criação de gado com o cultivo de cereais em áreas mistas que
ajudou os povos agrícolas, dentro da sociedade bárbara, a superar as tribos
meramente pastoris, e a se transformarem, nas condições favoráveis dos vales
dos rios da Mesopotâmia, Egito, Índia e China, nos berços da civilização.
Desde o
advento dos povos civilizados, existiram três; diferentes níveis essenciais de
progresso, que correspondem a seus modos de assegurar as necessidades vitais: a
coleta de alimentos, a produção elementar de alimentos e a produção mista, com
um alto desenvolvimento da divisão do trabalho e uma crescente troca de
mercadorias.
Os gregos
da época clássica eram altamente conscientes desta disparidade de
desenvolvimento entre eles próprios e os povos que ainda se mantinham numa,
etapa mais atrasada de desenvolvimento social. Assinalaram esta diferença
fazendo uma distinção marcante entre os gregos civilizados e os bárbaros. A
conexão e distância histórica entre eles foi explicitamente assinalada pelo
historiador Tucídides, ao afirmar:
“Os gregos viviam anteriormente como
os bárbaros vivem hoje”.
O Novo e o Velho Mundo
A
desigualdade do desenvolvimento histórico mundial raras vezes foi tão notável
como quando os nativos da América se enfrentaram pela primeira vez com os
invasores brancos que vinham da Europa. Encontraram-se ali duas rotas de
evolução social completamente separadas, produtos de dez a vinte mil anos de
desenvolvimento independente nos dois hemisférios. Ambas se viram obrigadas a
comparar suas proporções de crescimento e a medir seus respectivos resultados
globais. Esta foi uma das mais marcantes confrontações de diferentes culturas
em toda a História.
Naquele
momento a Idade da Pedra chocou-se com o final da Idade do Ferro e o começo da
mecanização. Na caça e na guerra, o arco e a flecha tiveram que competir com o
mosquete e o canhão; na agricultura, a enxada e o bastão, com o arado e os
animais de tração; no transporte aquático, a canoa com o navio; na locomoção
terrestre, as pernas humanas com o cavalo e os pés descalços com a roda. Na
organização social, o coletivismo tribal contra as instituições e costumes
feudal-burgueses; a produção para o consumo imediato da comunidade contra uma
economia monetária e o comércio internacional.
Poderíamos
multiplicar estes contrastes entre os índios americanos e os europeus
ocidentais. Contudo, a desigualdade dos produtos humanos de enormes etapas
separadas de desenvolvimento econômico foi, aparentemente, demasiado violenta.
Surgiram grandes antagonismos; trataram de manter-se separados uns dos outros
e, assim como no princípio os chefes astecas identificaram os recém-chegados
brancos com deuses, os europeus, reciprocamente, olhavam e tratavam os nativos
como animais.
Como
sabemos, a desigualdade de produtividade e poder destrutivo na América do Norte
não foi superada pela adoção, pelos índios, dos métodos dos brancos e sua
assimilação gradual e pacífica à sociedade de classes. Pelo contrário, nos
quatro séculos seguintes chegou-se à expropriação e aniquilação das tribos
indígenas.
O Atraso da Vida Colonial
Se os
colonizadores brancos desenvolveram sua superioridade material sobre os povos
nativos, eles pr6prios estavam atrasados em relação à pátria de origem.
O atraso
geral do continente norte-americano e suas colônias, em comparação ao ocidente
europeu, predeterminou as principais linhas de seu desenvolvimento desde o
começo do século X-VI até meados do século XIX. Neste período, a tarefa central
dos americanos foi alcançar a Europa e superar a disparidade no desenvolvimento
social dos dois continentes. Como e por quem foi feito isto é o principal tema
da história norte-americana ao longo destes três séculos e meio.
Isto
exigiu, entre outras coisas, duas revoluções para completar a tarefa. A
revolução colonial, que coroou a primeira etapa de progresso, deu ao povo
americano instituições políticas mais avançadas que as de qualquer outro lugar
do velho mundo e aplainou o caminho para a rápida expansão econômica. De toda
maneira, depois de haver conquistado a independência nacional, os EUA tiveram
ainda que conquistar a independência econômica dentro do mundo capitalista. A
diferença econômica entre esse pais e as nações do ocidente da Europa
limitou-se à primeira metade do século XIX e encerrou-se virtualmente com o
triunfo do capitalismo industrial do Norte sobre os poderes escravistas, na
guerra civil. Não foi necessário muito tempo para que os Estados Unidos
superassem a Europa Ocidental.
As Desigualdades dos Continentes e
Países
Estas
mudanças na posição dos Estados Unidos ilustram a desigualdade de
desenvolvimento entre os centros metropolitanos e as colônias, entre os
diferentes continentes e entre os países de um mesmo continente.
Uma
comparação entre os diversos modos de produção nos diversos países demonstraria
mais abruptamente suas desigualdades. O escravismo havia virtualmente terminado
como modo de produção, nos países da Europa, antes de ser introduzido na
América, em virtude das necessidades dos próprios europeus. A servidão havia
desaparecido na Inglaterra antes de surgir na Rússia e houve tentativas de
implantá-la nas colônias norte-americanas depois de ter sido varrida na
metrópole. Na Bolívia, o feudalismo floresceu sob os conquistadores espanhóis e
fez deteriorar o escravismo, ao passo que, nos Estados Unidos, este surgiu
freando o feudalismo.
O
capitalismo estava altamente desenvolvido no ocidente da Europa, enquanto que
no Leste era implantado só superficialmente. Uma disparidade similar no
desenvolvimento capitalista prevaleceu entre os Estados Unidos e México.
A
desigualdade é a “lei mais geral do processo histórico” (História da Revolução
Russa, pág. 5). Estas desigualdades são a expressão específica da natureza
contraditória do progresso social e da dialética do desenvolvimento humano.
Desigualdades Internas
A
desigualdade do desenvolvimento entre os continentes e países é acompanhada por
semelhante crescimento desigual dos distintos elementos dentro de cada grupo
social ou organismo nacional.
Em uma
obra sobre a classe operária norte-americana, escrita por Karl Kautsky no
começo do século, o marxista alemão assinalava alguns dos contrastes marcantes
no desenvolvimento social da Rússia e dos Estados Unidos nessa época.
“Dois estados existem” -escreveu - “diametralmente
opostos um ao outro. Cada um deles contém um elemento extremamente desenvolvido
em comparação com o seu nível capitalista. Na Rússia é o proletariado. Em
nenhum outro país como na América do Norte se pode falar com tanta propriedade
da ditadura do capital, ao passo que em nenhum o proletariado adquiriu tanta
importância como na Rússia”.
Esta
diferença no desenvolvimento, que Kautsky descreve nos seus primórdios, se
acentuou enormemente em suas etapas ulteriores. Trotsky fez uma análise
extraordinária do significado de tais desigualdades para explicar o curso de
uma história nacional, no primeiro capítulo de sua “História da Revolução Russa”,
sobre “as peculiaridades do desenvolvimento russo”. A Rússia czarista continha
forças sociais que pertenciam a três diferentes etapas do desenvolvimento
histórico. No alto estavam os elementos feudais: uma monstruosa autocracia
asiática, um clero estatal, uma burocracia servil, uma nobreza territorial
privilegiada. Mais abaixo, havia uma fraca e impopular burguesia e uma
intelectualidade covarde. Estes fenômenos opostos estavam organicamente
inter-relacionados. Constituíam distintos aspectos de um processo social
unificado. As condições históricas que fortificaram e preservaram o predomínio
das forças feudais - a lentidão do desenvolvimento russo, a sua economia
atrasada, o primitivismo de suas formas sociais e seu baixo nível de cultura -
haviam freado o crescimento das forças sociais e acentuado sua debilidade
social e política.
Este foi
um aspecto da situação. Por outro lado, o extremo atraso da história russa
havia deixado sem resolver os problemas agrários e nacionais, provocando
descontentamento, fome de terra no campesinato e anseio de liberdade nas
nacionalidades oprimidas. Enquanto isso, aparecia a indústria capitalista,
dando origem a empresas altamente concentradas, sob a dominação do capital financeiro
estrangeiro, e a um proletariado não menos concentrado, armado com as últimas ideias,
organizações e métodos de luta.
Esta
violenta desigualdade na estrutura social da Rússia czarista forneceu a base
para os acontecimentos revolucionários que explodiram, quando da queda da
decadente estrutura medieval em 1917, e culminaram em poucos meses levando ao
poder o proletariado e o partido bolchevique. Somente analisando e
compreendendo isto, é possível captar porque a revolução russa se deu desta
maneira.
Irregularidades na Sociedade
As
pronunciadas irregularidades que se produziram na história induziram alguns
pensadores a negar que haja, ou possa haver, alguma causalidade ou lei no
desenvolvimento social. A escola mais conhecida de antropólogos norte-americanos,
encabeçada pelo falecido Franz Boas, nega explicitamente que possa haver alguma
sequência determinada de etapas que possam ser descobertas na evolução social,
ou que as expressões culturais estejam ligadas à tecnologia ou à economia.
Segundo R. H. Lowitt, o expositor mais conhecido deste ponto de vista, os
fenômenos culturais apresentam meramente o caráter de “um caos sem plano”, uma “selva
caótica”. A “selva caótica” está na cabeça desse anti-materialista e
anti-evolucionista, e não na história ou na constituição da sociedade.
É possível
que os povos que vivem, no século XX, sob as condições da Idade da Pedra,
possuam um rádio - resultado do desenvolvimento combinado. Mas é
categoricamente impossível encontrar tal produto da eletrônica contemporânea
enterrado com os resquícios humanos da Idade da Pedra depositados há
muitíssimos anos.
Não é
preciso ser muito esperto para perceber que um coletor de alimentos, de ervas,
um caçador, um pescador ou um caçador de aves, existiram muito antes que a
produção de alimentos em forma de horticultura ou criação de gado. Ou que as
ferramentas de pedra precederam as de metal; que a palavra precedeu a escrita;
que as cavernas existiram antes das aldeias; que a troca de bens precedeu a
moeda. Numa escala histórica geral, estas sequências são absolutamente
invioláveis.
As
principais características da estrutura social simples dos selvagens são
determinadas por seus primitivos métodos de produzir os meios de vida, que
dependem, por sua vez, do baixo nível de suas forças produtivas.
Estima-se
que os povos coletores de alimentos requerem, em média, 40 milhas quadradas per
capita para se manterem. Não podem produzir nem manter grandes concentrações de
população sobre tais fundamentos econômicos. Geralmente agrupam menos de
quarenta pessoas e raras vezes excedem a cem. A iniludível estreiteza de sua
produção de alimentos e a dispersão de sua força limitam estritamente seu
desenvolvimento.
Da Barbárie à Civilização
Que se
pode dizer a respeito da etapa seguinte de desenvolvimento social, a barbárie?
0 notável arqueólogo V. Gordon Childe publicou recentemente, num livro chamado “Evolução
Social”, um resumo, dos “sucessivos passos através dos quais as culturas
bárbaras entram na via da civilização, em contraste com seu ambiente natural”.
Childe reconhece que o ponto de partida na esfera econômica foi idêntico em
todos os casos, “na medida em que as primeiras culturas bárbaras examinadas
estavam baseadas no cultivo dos mesmos cereais, e no pastoreio das mesmas
espécies de animais”. Ou seja, a barbárie separa-se das formas selvagens de
vida pela aquisição e aplicação de técnicas produtivas mais elevadas para a
agricultura e a criação de gado.
A chegada
ao resultado final - a civilização - exibe diferenças concretas em cada caso, “contudo,
em toda parte, significa a agregação de grandes populações nas cidades, assim
como a diferença entre a produção primária (pescadores, agricultores etc.) e a
de artesãos especializados em tempo integral, mercadores, burocratas, clero e
governantes; uma efetiva concentração do poder político e econômico; o uso de
símbolos convencionais para lembrar e transmitir informações (escrita) e também
padrões convencionais de pesos e medidas e de medidas de tempo e espaço que
levam a um tipo de ciência matemática e calendário”.
Ao mesmo
tempo, Childe assinala que “os passos que integram este desenvolvimento não
apresentam, igualmente, um paralelismo abstrato”. A economia rural do Egito,
por exemplo, tem um desenvolvimento diferente do da Europa de clima temperado.
Na agricultura do velho mundo, a enxada foi substituída pelo arado, ferramenta
que não era conhecida pelos maias.
A
conclusão geral que Childe tira destes fatos é que “o desenvolvimento da
economia rural bárbara das regiões estudadas não apresenta paralelismo e sim
convergências e divergências” (pág. 162). Mas isto não é suficiente.
Considerados
em sua totalidade e em sua inter-relação histórica, a maioria dos povos que
entram na barbárie surge das mesmas atividades econômicas essenciais, o cultivo
de cereais e criação de gado. Tiveram um desenvolvimento diversificado de
acordo aos diferentes habitats naturais e circunstâncias históricas e
comprovam, ao percorrer o caminho rumo à civilização, que não foram detidos na
rota ou obliterados, e atingiram por fim o mesmo destino: a civilização.
A Marca da Civilização
Que
ocorreu com a evolução da civilização? É um “caos sem plano”? Quando analisamos
a marcha do gênero humano através da civilização, vemos que seus segmentos
avançados passaram sucessivamente pelo escravismo, feudalismo e capitalismo e
agora estão a caminho do socialismo. Isto não significa que cada setor da
humanidade tenha passado por esta sequência invariável de etapas históricas,
como cada um dos povos bárbaros passou através da mesma sequência de etapas.
Mas a sua efetiva consecução permite a quem chega mais tarde combinar ou
comprimir etapas históricas inteiras.
O curso
real da história, a passagem de um sistema social a outro, de um nível de
organização a outro, é muito mais complicado, heterogêneo e contraditório do
que aquele que se pode dar num esquema histórico geral. O esquema histórico
universal das estruturas sociais - selvageria, barbárie, civilização - com suas
respectivas etapas, é uma abstração. É uma abstração indispensável e racional,
que corresponde às realidades essenciais do desenvolvimento e serve como guia
para a investigação, mas não pode subestimar diretamente a análise de nenhum segmento
concreto da sociedade.
Uma linha
reta pode ser a distância mais curta entre dois pontos, mas a humanidade frequentemente
deixou de lado esse adágio e seguiu aquele que diz que “o caminho mais longo é
o mais perto de casa”.
Na
história mesclam-se ambas: regularidades e irregularidades. A regularidade é
fundamentalmente determinada pelo caráter e desenvolvimento das forças
produtivas e o modo de produzir os meios de vida. Contudo, este determinismo
básico não se manifesta no desenvolvimento real da sociedade de maneira
simples, direta e uniforme, e sim por meios extremamente complexos, desviados e
heterogêneos.
A Evolução Desigual do Capitalismo
Isto está
exemplificado com maior ênfase na evolução do capitalismo e suas partes
componentes. O capitalismo é um sistema econômico mundial. Nos últimos cinco
séculos se desenvolveu de país a país, de continente a continente, e passou
através das fases sucessivas do capitalismo comercial, industrial, financeiro e
capitalismo estatal monopolista. Cada país, mesmo que atrasado, foi levado à
estrutura das relações capitalistas e se viu sujeito às suas leis de
funcionamento. Enquanto cada nação entrou na divisão internacional do trabalho
sobre a base do mercado mundial capitalista, cada uma participou de forma peculiar
e em grau diferente na expressão e expansão do capitalismo, e jogou diferente
papel nas distintas etapas de seu desenvolvimento.
O
capitalismo surgiu com muito maior força na Europa e América do Norte do que na
Ásia e África. Estes foram fenômenos interdependentes, lados opostos de um
único processo. O fraco desenvolvimento capitalista nas colônias foi produto e
condição do superdesenvolvimento das áreas metropolitanas, que se realizou às
custas das primeiras.
A
participação de várias nações no desenvolvimento do capitalismo não foi menos
irregular. A Holanda e a Inglaterra tomaram a direção no estabelecimento das
formas e forças capitalistas nos séculos XVI e XVII, enquanto a América do
Norte estava ainda, em grande medida, em posse dos índios. Contudo, na fase
final do capitalismo, no século XX, os Estados Unidos superaram amplamente a
Inglaterra e a Holanda. À medida que o capitalismo ia captando dentro de sua
órbita um país após o outro, aumentavam as diferenças mútuas. Esta crescente
interdependência não significa que sigam pautas idênticas ou possuam as mesmas
características. Quando mais se estreitam as suas relações econômicas, surgem
profundas diferenças que os separam. O seu desenvolvimento nacional não se
realiza, em muitos aspectos, ao longo de linhas paralelas, e sim através de
linhas angulares, às vezes divergentes como ângulos retos. Adquirem troços não
idênticos, mas complementares.
Causas Iguais, Efeitos Diferentes
A regra
que diz que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos não é incondicional e
geral. A lei só é válida quando a história produz as mesmas condições, mas
geralmente há diferenças para cada país e constantes mudanças e intercâmbios
entre eles. As mesmas causas básicas podem conduzir a resultados muito
diferentes e até opostos.
Por
exemplo, na primeira metade do século XIX, a Inglaterra e os EUA eram ambos
governados pelas mesmas leis do capitalismo industrial. Mas estas leis operavam
sob diferentes condições nos dois países e produziram resultados muito
diferentes na agricultura. A enorme demanda da indústria britânica por algodão
e alimentos baratos estimulou poderosamente a agricultura norte-americana, ao
mesmo tempo em que os mesmos fatores econômicos sufocaram os camponeses da
Inglaterra. A expansão da agricultura num país e sua contração no outro foram consequências
opostas, mas interdependentes, das mesmas causas econômicas.
Passando
do processo econômico ao intelectual, o marxista russo Plekhanov assinalava, no
seu notável trabalho “Em defesa do materialismo” (pág. 126), como o
desenvolvimento desigual dos diversos elementos que compõem uma estrutura
nacional permite ao mesmo conjunto de ideias produzir um impacto social muito
diferente sobre a vida filosófica.
Falando do
desenvolvimento ideológico no século XVIII, Plekhanov assinalava:
“O mesmo conjunto de ideias levou ao
ateísmo militante dos materialistas franceses, ao indiferentismo religioso de
Hume, e à religião ‘prática’ de Kant. A razão foi que a questão religiosa na
Inglaterra, nesse tempo, não jogava o mesmo papel que na França, nem nesta como
na Alemanha. E esta diferença no significado da questão religiosa tinha suas
raízes na distinta relação em que estavam as forças sociais em cada um desses
países. Similares em sua natureza, mas díspares em seu grau de desenvolvimento,
os elementos da sociedade combinavam-se de modo diferente nos distintos países
europeus e conduziam, cada um deles, a um estado de consciência muito
particular, que se expressava na literatura nacional, na filosofia, na arte,
etc. Como consequência disto, uma mesma questão pode apaixonar os franceses e
deixar indiferentes os britânicos. Um mesmo argumento pode ser considerado com
respeito por um alemão progressista, enquanto um francês progressista o verá
com ódio amargo”.
Peculiaridades Nacionais
Desejaria
terminar este exame do processo de desenvolvimento desigual com uma discussão
do problema das peculiaridades nacionais. Os marxistas são amiúde acusados por
seus inimigos de negar, ignorar ou subestimar as peculiaridades nacionais em
favor das leis históricas universais. Não é verdade. Não é correta essa
crítica, embora alguns marxistas individualmente possam ser acusados de tais
erros.
O marxismo
não nega a existência e a importância das peculiaridades nacionais. Seria teoricamente
estúpido e praticamente sem valor se o fizesse, dado que as diferenças
nacionais podem ser decisivas para orientar a política do movimento operário,
de uma luta nacional ou de um partido revolucionário, durante certo período num
dado país. Por exemplo, a maior parte dos ativistas operários da Grã-Bretanha
seguem o partido trabalhista.
Este
monopólio é uma peculiaridade fundamental da Grã-Bretanha e do desenvolvimento
político dos seus trabalhadores. Os marxistas que não levarem em conta este fator,
como chave de sua orientação organizativa, estarão violando o espírito do seu
método. Há outro exemplo remoto: na maior parte dos países coloniais, hoje em
dia, as raças de cor estão lutando contra o imperialismo pela independência
nacional contra a opressão das nações brancas. Nos Estados Unidos, pelo
contrário, a luta dos negros contra seu caráter de cidadãos de segunda classe
se caracteriza por não ser um movimento pela separação e sim pela demanda de
integração incondicional à vida americana, sobre bases iguais.
Sem ter em
conta este caráter específico é impossível compreender as principais tendências
da luta dos negros americanos na atual etapa. Longe de rejeitar as diferenças
nacionais, o marxismo é o único método histórico, a única teoria sociológica
que as explica adequadamente, demonstrando quais são suas raízes nas condições
materiais de vida e considerando suas origens históricas, desenvolvimento,
desintegração e desaparecimento. As escolas burguesas de pensamento veem as
peculiaridades nacionais com um critério distinto, como acidentes
inexplicáveis, como produto da vontade divina ou de características fixas e
finais de um determinado povo. O marxismo as vê como um produto histórico que
surge de combinações concretas de forças e condições internacionais.
Este
procedimento de combinar o geral com o particular e o abstrato com o concreto
está de acordo não somente com as exigências da ciência como também com nossos
hábitos diários de raciocínio. Cada indivíduo tem uma expressão facial diferente,
o que nos permite reconhecê-lo e separá-lo dos outros. Ao mesmo tempo,
compreendemos que este indivíduo tem o mesmo gênero de olhos, ouvidos, boca,
fronte e outros órgãos que o restante da raça humana. De fato, a fisionomia
particular que produz sua expressão diferente é só a manifestação fundamental
de um conjunto específico dessas estruturas e características humanas comuns. O
mesmo ocorre com a vida e a fisionomia de uma dada nação.
Cada nação
tem seus próprios traços característicos. Mas essas peculiaridades surgem como consequência
da modificação de leis gerais em função das condições materiais e históricas
específicas. São, em última instância, a cristalização particular de um processo
universal.
Trotsky
concluiu que as peculiaridades nacionais são o produto mais geral do
desenvolvimento histórico desigual, seu resultado final.
Os Limites das Peculiaridades
Nacionais
Contudo,
por mais profundamente assentadas que estejam estas peculiaridades na estrutura
social e por mais poderosa que seja sua influência sobre a vida nacional, elas
são limitadas. Em primeiro lugar, são limitadas na ação. Não substituem o
processo superior da economia e política mundial nem podem abolir o funcionamento
de suas leis.
Consideremos,
por exemplo, as diferentes consequências políticas da crise mundial de 1929,
nos EUA e Alemanha, devidas às diferenças no contexto histórico, na estrutura
social específica e na evolução política nacional. Num caso, o New Deal de
Roosevelt chegou ao poder e no outro, o fascismo de Hitler. O programa de
reforma sob os auspícios democrático-burgueses, e o programa da contrarrevolução
sob a fria ditadura totalitária, foram métodos totalmente diferentes utilizados
pelas respectivas classes capitalistas para salvar a pele.
Este
contraste entre as forças capitalistas americana e alemã de autopreservação foi
explorada até a exaustão pelos apologistas do capitalismo norte-americano, os
quais o atribuíram ao espírito democrático inerente à nação americana e aos
seus governantes capitalistas. Na realidade, a diferença se deveu à maior
riqueza e recursos do imperialismo dos EUA, por um lado, e à imaturidade das
relações de classe e conflitos, por outro. Contudo, na etapa seguinte e antes
que sobreviesse a decadência, o processo do imperialismo levou ambas as
potências a uma segunda guerra mundial, para determinar quem dominaria o
mercado mundial. Apesar de significativas diferenças em seus regimes políticos
internos, ambas chegaram ao mesmo destino. Continuaram subordinadas às mesmas
leis fundamentais do imperialismo capitalista e não puderam impedir seu
funcionamento nem evitar suas consequências.
Em segundo
lugar, as peculiaridades nacionais têm limites historicamente definidos. Não estão
fixadas para sempre nem têm um destino absolutamente determinado. Condições
históricas as geram e as suplantam; novas condições históricas podem
alterá-las, eliminá-las e ainda transformá-las em seus opostos.
No século
XIX, a Rússia era o país mais reacionário da Europa e da política mundial; no
século XX transforma-se no mais revolucionário. Em meados do século XIX os
Estados Unidos eram a nação mais revolucionária e progressista; em meados do
século XX, substituíram a Rússia como fortaleza da contrarrevolução mundial.
Mas este papel tampouco pode ser eterno, como assinalaremos no próximo
capítulo, onde estudaremos o caráter e consequências do desenvolvimento
desigual e combinado.
O Desenvolvimento Combinado e suas Consequências
Analisaremos
agora o segundo aspecto da lei do desenvolvimento desigual e combinado. Seu
nome indica de qual lei geral é ela uma expressão particular, ou seja, a lei da
lógica dialética chamada “lei da interpenetração dos opostos”. Os dois
processos - desigualdade e combinação - que estão unidos nesta formulação
representam dois aspectos ou etapas da realidade opostos e, não obstante,
integralmente relacionados e interpenetrados.
A lei do
desenvolvimento combinado parte do reconhecimento da desigualdade nas
proporções de desenvolvimento de vários fenômenos das mudanças históricas. A
disparidade no desenvolvimento técnico e social, e a combinação fortuita de
elementos, tendências e movimentos pertencentes a diferentes etapas da
organização social, dão a base para o surgimento de algo novo e de qualidade
superior.
Esta lei
permite-nos observar como surge a nova qualidade. Se a sociedade não se
desenvolvesse num caminho diferencial, ou seja, através do surgimento de
diferenças, às vezes tão agudas que se tomam contraditórias, não haveria
possibilidade de combinação e integração de fenômenos contraditórios. Contudo,
a primeira fase do processo evolutivo - desigualdade - é o pré-requisito
indispensável para a segunda fase: a combinação de características que
pertencem a diferentes etapas da vida social nas distintas formações sociais,
desviando-se dos padrões deduzidos abstratamente ou tipos “normais”.
Esta
combinação surge como a necessária superação da desigualdade pré-existente.
Podemos ver como ocorrem quase sempre juntas e ligadas na simples lei da
combinação e desigualdade do desenvolvimento. Partindo do fato dos níveis
diversos de desenvolvimento que resultam da progressão desigual dos distintos
aspectos da sociedade, poderemos agora analisar a próxima etapa e a necessária consequência
desta situação: a sua combinação.
Fusão de Diferentes Fatores Históricos
Antes de
mais nada, devemos perguntar-nos o que significa combinado. Pudemos ver como
características que pertencem a uma etapa da evolução se ligam a outras que são
essencialmente próprias de uma etapa mais elevada. A igreja católica, cujo
centro está no Vaticano, é uma característica instituição feudal. Na
atualidade, o papa usa rádio e televisão - invenções do século XX - para
disseminar a doutrina da igreja. Isto conduz a uma segunda questão: como se
combinam as diferentes características? Aqui, as combinações dos metais nos
proporcionam uma analogia útil. O bronze, que joga um grande papel no
desenvolvimento das mais antigas construções de ferramentas, que deu seu nome a
toda uma etapa do desenvolvimento histórico, compôs-se de dois metais
elementares, o cobre e o estanho, misturados em proporções específicas. A sua
fusão produz uma liga com propriedades importantes que diferem de ambos os
metais que o constituem. Algo semelhante Ocorre na história quando se unem
elementos que pertencem a diferentes etapas da evolução social. Esta fusão dá
origem a um novo fenômeno, com suas próprias características especiais. O
período colonial da história norte-americana une-se à selvageria e barbárie,
quando a civilização europeia mudava do feudalismo para o capitalismo. Deste
modo, proporcionou um magnífico caldo de cultivo para as combinações e deu o
mais instrutivo campo para seu estudo. Quase todos os gêneros de relações
sociais conhecidos, desde a selvageria às companhias por ações, podiam ser
encontradas no novo mundo durante o período colonial. Várias colônias, como
Virgínia e Carolina do Norte e do Sul, foram originalmente civilizadas por
empresas capitalistas por ações, cujas licenças haviam sido garantidas pela
Coroa. As formas mais avançadas de capitalismo regiam a empresa acionária que
entrou em contato com os índios que viviam ainda sob primitivas condições
tribais.
As formas
pré-capitalistas de vida com as que depararam foram combinadas num grau ou
outro com as características fundamentais da civilização burguesa. Tribos
indígenas, por exemplo, foram anexadas ao mercado mundial através do comércio
de peles; e é verdade que os índios se tomaram, em certa medida, civilizados.
Por outro lado, os colonos brancos europeus, caçadores, lenhadores e pioneiros
da agricultura barbarizaram-se parcialmente por terem sobrevivido no deserto
das planícies e nas montanhas dos campos “virgens”. Contudo, o lenhador europeu
que penetrava nos desertos da América, com seu rifle e sua enxada de ferro, e
também com sua concepção e hábitos de civilização, foi muito diferente do índio
Pele-Vermelha, ainda que muitas das atividades da sociedade bárbara do lenhador
também lhe correspondessem.
Em sua
obra sobre as forças sociais na história norte-americana, A. M. Simon, um dos
principais historiadores socialistas, escreveu: “O curso da evolução seguiu em
cada colônia uma linha de desenvolvimento muito parecida à que a raça havia
seguido” (pág. 30-31). No começo - assinalou - houve um comunismo primitivo.
Depois, uma pequena produção individual, e assim prosseguiu até chegar ao
capitalismo.
Contudo, a
concepção segundo a qual a colônia americana, ou algumas delas,
substancialmente repetiram as sequências das etapas que as sociedades avançadas
haviam atravessado antes delas, é excessivamente esquemática e ignota o
principal ponto relativo ao seu desenvolvimento e estrutura. A peculiaridade
mais significativa da evolução das colônias britânicas na América deriva do
fato de que todas as formas de organização e as forças impulsionadoras
pertencentes às primeiras etapas do desenvolvimento social, desde a selvageria
e igualmente no caso da escravidão, foram incorporadas e condicionadas pelo sistema
em expansão do capitalismo internacional. Não há, no solo americano, repetição
mecânica das etapas historicamente superadas. Pelo contrário, a vida colonial
testemunha uma mescla dialética de todos esses variados elementos; da qual
resultam deformações sociais combinadas de um tipo novo e especial. A
escravidão nas colônias americanas foi muito distinta da escravidão na Grécia
clássica e em Roma. A escravidão norte-americana foi uma escravidão
burguesificada, não se tratando apenas de um braço subordinado do mercado
capitalista mundial, senão que cada ramificação dessa fusão de escravidão e
capitalismo resultou na aparição de traficantes de escravos entre os índios
Creek, no Sul. Poder-se-ia encontrar algo mais contraditório que índios
comunistas, agora proprietários de escravos, vendendo seu produto num mercado
burguês?
Dialética da Combinação
O
resultado desta fusão de diferentes etapas ou elementos de progresso histórico
é, por consequência, uma mescla ou ligação particular de coisas. Na união de
elementos diferentes e opostos, a natureza dialética da história manifesta-se
por si mesma mais poderosa e proeminente. Aqui a contradição simples, óbvia,
flagrante, predomina.
A história
prega peças a todas as formas rígidas e às rotinas fixas. Surgem todos os
gêneros de desenvolvimentos paradoxais que confundem e deixam perplexas as
mentes limitadas e formalizadas.
Como um
importante exemplo disto, permita-nos considerar a natureza do stalinismo. Na
Rússia atual, a mais avançada forma de propriedade, a propriedade
nacionalizada, e o mais eficiente modo de organização industrial, a economia
planificada, ambas logradas através da revolução proletária de 1917, uniram-se
numa só massa com o tipo mais brutal de tirania, criada por uma contrarrevolução
política da burocracia soviética. Os fundamentos econômicos do regime
stalinista historicamente pertencem à era socialista do futuro. Contudo, este
fundamento econômico está unido a uma superestrutura política que mostra os
aspectos mais malignos das ditaduras de classe do passado. Não devemos
admirar-nos com o fato de que este fenômeno extraordinariamente contraditório
tenha confundido muita gente e as tenha levado pelo mau caminho.
O
desenvolvimento desigual e combinado apresenta-se como uma mescla particular de
elementos atrasados com os fatores mais modernos. Muitos católicos devotos
levam imagens em seus carros, supondo que os protegerão contra os acidentes.
Este costume combina o fetichismo dos crédulos selvagens com o produto da
indústria automobilística, uma das indústrias mais automatizadas, mais
avançadas do mundo moderno.
Por outro
lado, estas anomalias são mais evidentes nos países mais atrasados. Existem
curiosidades como haréns com ar condicionado!
“O desenvolvimento das nações
historicamente atrasadas leva necessariamente a uma combinação peculiar de
diferentes etapas do desenvolvimento histórico”, escreveu Trotsky na “História
da Revolução Russa” (pág. 5).
Carlton.
S. Coone escreveu:
“... Há, todavia, regiões marginais
onde a difusão cultural é desigual, onde simples caçadores da Idade da Pedra
surpreendentemente se enfrentam com estranhos caçadores com rifles, onde
trabalhadores neolíticos estão mudando suas enxadas de pedra por outras de aço
e seus potes de barro por vasilhas de lata para carregar água, onde orgulhosos
cidadãos dos antigos impérios costumavam receber as notícias algumas semanas
depois das caravanas de camelos, ouvem agora a propaganda através de rádios
públicas. E na calçada de ladrilhos azuis e brancos das cidades o claro apelo
dos muçulmanos, incitando a fé do crente, será substituído um dia por uma caixa
metálica pendurada no minarete. Fora, no aeroporto, os peregrinos dos lugares
santos saltam diretamente do lombo de seus camelos aos assentos do DC-4. Estas
mudanças na tecnologia levam ao nascimento de novas instituições nestes
lugares, como em qualquer outro, mas o recém-nascido geralmente é uma criatura
não familiar, que não se recorda nem dos parentes próximos nem dos distantes,
superando a ambos”. (“The History of Man”, pág. 113-114).
Na África
atual, entre os kikuyos do Quênia, como também entre os povos da Costa do Ouro,
as antigas ligações e costumes ajudam a fortalecer sua solidariedade na luta
pelo avanço social e pela independência nacional contra o imperialismo
britânico. No movimento nacionalista de Nkrumah, o partido parlamentar nacional
está ligado aos sindicatos e ao tribalismo - os três pertencem a diferentes
etapas da história social.
A mescla
de elementos atrasados com os mais modernos fatores pode ser vista quando
comparamos a China moderna com os Estados Unidos da América. Atualmente, muitos
camponeses chineses de pequenas aldeias têm retratos de Marx e Lênin em suas
paredes e inspiram-se em suas ideias. O operário norte-americano médio vive em
cidades mais modernas e tem, em contraste, pinturas de Cristo ou fotografias de
Eisenhower ou do Papa sobre suas paredes pré-fabricadas. Contudo, os camponeses
chineses não têm água corrente, estradas asfaltadas, automóveis, rádios ou
televisão, como têm os operários norte-americanos.
Desta
maneira, ainda que os Estados Unidos e a sua classe operária tenham progredido
mais que a China em seu desenvolvimento industrial e padrão de vida e de
cultura, em certos aspectos os camponeses chineses superaram o operário
norte-americano.
“A dialética histórica não conhece
nada semelhante ao atraso absoluto ou ao progresso quimicamente puro” como
assinalou Trotsky.
A Estrutura Social da Grã-Bretanha
Se
analisarmos a estrutura social da Grã-Bretanha contemporânea, poderemos ver que
a mesma conserva características de três períodos histórico-sociais distintos,
inextricavelmente relacionados. No cume de seu sistema político há uma
monarquia e uma igreja estabelecidas, ambas herdadas do feudalismo. Estas estão
conectadas à estrutura de propriedade capitalista monopolista pertencente à
etapa mais elevada do capitalismo. Junto a essa indústria capitalista existe a
indústria socializada, sindicatos e um partido trabalhista, todos precursores
do socialismo.
É
significativo que esta particular combinação contraditória na Grã-Bretanha
deixe perplexos os norte-americanos. Os norte-americanos liberais não podem
compreender porque os ingleses têm uma monarquia e uma igreja estabelecidas. Os
norte-americanos com mentalidade capitalista surpreendem-se com o fato da
classe dominante britânica tolerar o Partido Trabalhista.
Ao mesmo
tempo, a Grã-Bretanha é atingida pelo mais formidável de todos os movimentos
combinados de forças sociais de nosso tempo em escala mundial, ou seja, a
combinação do movimento anticapitalista da classe operária com a revolução
anticolonial dos povos de cor. Estes dois movimentos muito diferentes, ambos
opostos ao domínio imperialista, reforçam-se mutuamente.
Contudo,
estes dois movimentos não têm o mesmo efeito em todos os países imperialistas.
São sentidos, por exemplo, mais forte e diretamente na França e Grã-Bretanha
que nos EUA. Não obstante, nos EUA a luta dos povos coloniais pela
independência e da minoria negra pela igualdade influenciam-se mutuamente.
Os Saltos Progressivos na História
A
manifestação mais importante da interação do desenvolvimento desigual e
combinado é o surgimento de “saltos” no fluxo histórico. Os maiores saltos
tornam-se possíveis pela coexistência de povos de diferentes níveis de
organização social. No mundo atual, estas organizações sociais variam muito,
desde a selvageria até o verdadeiro limiar do socialismo. Na América do Norte,
enquanto os esquimós no Ártico e os índios Seri na Baixa Califórnia vivem ainda
na selvageria, os banqueiros de Nova Iorque e os operários de Detroit vivem na
mais elevada etapa do capitalismo monopolista. Os “saltos” históricos se tomam
inevitáveis porque os setores atrasados da sociedade enfrentam tarefas que só
podem ser resolvidas com a utilização dos métodos mais modernos. Sob a pressão
das condições externas, veem-se obrigados a saltar ou precipitar etapas da
evolução que originalmente requerem um período histórico inteiro para
desenvolver as suas potencialidades.
Quanto
mais amplas são as diferenças do desenvolvimento e maior o número de etapas
presentes num dado período, mais dramáticas são as possíveis combinações de
condições e forças, e mais rápida a natureza dos saltos Algumas combinações
produzem extraordinárias erupções e rápidos movimentos na história. O
transporte fez evoluir lentamente a locomoção humana e animal, desde os
veículos de rodas até o trem, automóveis e aviões. Recentemente, contudo, os
povos da América do Sul e da Sibéria passaram diretamente, e de um só salto, do
animal ao uso de aviões.
Tribo,
nação e classe são capazes de comprimir etapas ou de saltar sobre elas,
assimilando as conquistas dos povos mais avançados. Usam isto como uma alavanca
para se elevarem sobre as etapas intermediárias e ultrapassam obstáculos de um
só salto. Mas não podem fazer nada até que os países pioneiros na vanguarda do
gênero humano tenham previamente aberto o caminho, pré-fabricando as condições
materiais. Outros povos preparam os meios e modelos para, uma vez maduros,
adaptá-los às suas condições peculiares.
A
indústria soviética foi capaz de progredir tão rápido porque, entre outras
razões, pôde importar as técnicas e maquinários do Ocidente. Agora também a
China pode marchar em um ritmo mais acelerado em sua industrialização porque se
baseia não somente nas conquistas técnicas dos países capitalistas avançados,
como também em métodos de planificação da economia soviética.
Em seus
esforços para superar a Europa Ocidental, os colonizadores da costa do
Atlântico Norte passaram através da “barbárie selvagem”, saltando virtualmente,
por cima do feudalismo, implantando e extirpando a escravidão, constituindo
grandes povoações e cidades sobre uma base capitalista. Isto se fez em ritmo
acelerado. Aos povos europeus foram necessários três mil anos para saltar da
etapa superior da barbárie da Grécia homérica à Inglaterra vitoriosa da
revolução burguesa de 1849. A América do Norte cobriu as mesmas transformações
em trezentos anos, ou seja, a um ritmo de desenvolvimento dez vezes mais
rápido. Mas isto foi possível pelo fato de que a América do Norte pôde
beneficiar-se com as aquisições prévias da Europa, combinando-as com a
impetuosa expansão do mercado capitalista em todos os cantos do globo.
Ao longo
desta aceleração e compressão do desenvolvimento social foi-se acelerando
também o tempo de desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários. O povo
britânico tardou oito séculos desde o começo do feudalismo no século IX, até a
sua revolução burguesa vitoriosa no século XVII. Os colonos norte-americanos
somente em cento e setenta e cinco anos passaram de seus primeiros
assentamentos no século XVII à sua revolução vitoriosa no último quarto do
século XVIII.
Nestes
saltos históricos as etapas do desenvolvimento são algumas vezes comprimidas e
outras omitidas, o que depende das condições e das forças particulares. Nas
colônias norte-americanas, por exemplo, o feudalismo - que floresceu na Europa
e na Ásia por muitos séculos - mal conseguiu existir. As instituições
características do feudalismo (feudo, servos, monarquia, a igreja estabelecida
e as corporações medievais) não tiveram um ambiente favorável e foram
comprimidas entre a escravidão comercial por um lado, e a sociedade burguesa
enxertada por outro. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o feudalismo ia sendo
atrofiado e estrangulado nas colônias norte-americanas, adquiria uma vigorosa
expansão no outro lado do mundo, na Rússia.
Reversões Históricas
A história
tem as suas reversões, assim como seus movimentos para frente, seus períodos de
reação, formas infantis e características caducas próprias de etapas primitivas
de desenvolvimento. Podem unir-se com estruturas avançadas para gerar formações
extremamente regressivas e impedir o avanço social. Um exemplo primário de tal
combinação regressiva foi a escravidão na América do Norte, onde um modo de
propriedade e uma forma de produção anacrônica, pertencente à infância da
civilização se inseriu num ambiente burguês que pertencia a uma sociedade de
classe madura.
A recente
história política familiarizou-nos com os exemplos do fascismo e do stalinismo,
que são fenômenos históricos do século XX simétricos, ainda que não idênticos.
Ambos representam reversões de formas de governos democráticos pré-existentes
que tinham bases sociais completamente diferentes. O fascismo foi o destruidor
e substituto da democracia burguesa no período final da decadência e destruição
do imperialismo. O stalinismo foi o destruidor e substituto da democracia
operária da Rússia revolucionária no período inicial da revolução socialista
internacional.
Desta
forma, encontramos misturadas duas etapas no movimento dialético da sociedade.
Primeiro, algumas partes do gênero humano e certos elementos da sociedade
movem-se mais rapidamente e desenvolvem-se antes que outros. Mais tarde, sob o
choque de forças externas produz-se um retrocesso, ou uma estagnação, em
relação ao ritmo de progresso de seus precursores, pela combinação das últimas
inovações com velhos modos de existência.
A Desintegração das Combinações
Mas a
história não se detém neste ponto. Cada síntese única surgida do
desenvolvimento desigual e combinado engendra em si mesma posteriores crescimentos
e mudanças, as quais, por sua vez, podem levar a uma eventual desintegração e
destruição da síntese.
Uma
formação combinada é um amálgama de elementos derivados de diferentes níveis de
desenvolvimento social. A sua estrutura interna é, portanto, altamente
contraditória. A oposição dos seus polos constituintes não só provoca
instabilidade na formação, senão que leva diretamente a posteriores
desenvolvimentos. Mais claramente que a qualquer outra formação, a luta dos
opostos caracteriza o curso de vida de uma formação combinada.
Há dois
tipos principais de combinação. Em um caso, o produto de unia cultura avançada
é absorvida na estrutura de um organismo social arcaico. Em outro, aspectos de
uma ordem primitiva são incorporados a um organismo social em grau mais elevado
de desenvolvimento.
O efeito
que produz a assimilação de elementos mais modernos numa estrutura depende de
muitas circunstâncias. Por exemplo, os índios puderam substituir a enxada de
pedra pela de ferro sem deslocamentos fundamentais da sua ordem social, porque
esta mudança significou apenas uma dependência mínima da civilização branca, da
qual a enxada de ferro foi tomada. A introdução do cavalo mudou
consideravelmente a vida dos índios das pradarias, ao estender o alcance de
seus campos de caça e de suas habilidades guerreiras. Contudo, o cavalo não
transformou sua relação tribal básica. Mas, em contrapartida, a participação
num nascente comércio e a penetração da moeda teve consequências
revolucionárias sobre os índios destruindo seu sistema tribal, opondo os
interesses privados aos costumes comunitários, lançando uma tribo contra outra
e subordinando os novos comerciantes e caçadores índios ao mercado mundial.
Sob certas
condições históricas a introdução de novas coisas pode, também, prolongar por
algum tempo a vida das instituições mais arcaicas. A entrada dos grandes
consórcios de petróleo capitalistas no Oriente Médio fortaleceu temporariamente
os sheiks, dando-lhes enormes quantidades de riquezas. Mas em longo prazo, a
invasão de técnicos e ideias modernas não pode ajudar, e sim minar os velhos
regimes tribais, porque rompem as condições sobre as quais eles se apoiam e
criam novas forças que se lhes opõe para substituí-los.
Um poder
primitivo pode afirmar-se rapidamente sobre um mais moderno, ganhando renovada
vitalidade, e pode também aparecer por um certo período como superior ao outro.
Mas o poder menos desenvolvido levará uma existência essencialmente parasita e
não poderá sustentar-se indefinidamente às expensas do mais desenvolvido.
Falta-lhe adequado terreno e atmosfera para seu crescimento, enquanto as
instituições mais desenvolvidas não só são superiores por natureza, como além
disso, podem contar com um favorável ambiente para a sua expansão.
Escravidão e Capitalismo
O desenvolvimento
da escravidão na América do Norte dá uma excelente ilustração dessa dialética.
Do ponto de vista da história mundial, a escravidão foi um anacronismo desde o
seu nascimento neste continente. Como modo de produção pertencia à infância da
sociedade de classes; havia praticamente desaparecido da Europa Ocidental.
Contudo, a importância das demandas, por parte da Europa Ocidental, de
matérias-primas como açúcar, algodão e tabaco, combinada com a carência de
trabalhadores para levar a cabo operações agrícolas em grande escala, obrigaram
a implantar a escravidão na América do Norte. A escravidão colonial cresceu
como um braço do capitalismo comercial. Desta maneira um modo de produção e uma
forma de propriedade superados há muito tempo, surgiram novamente como consequência
das exigências de um sistema mais moderno e fizeram parte dele.
Esta
contradição agudizou-se quando o surgimento do capitalismo industrial na
Inglaterra e nos Estados Unidos incrementou a produção de algodão dos estados
do Sul levando a um lugar de destaque na vida econômica e política da América
do Norte. Durante décadas os dois sistemas opostos funcionaram como equipe.
Quando a guerra civil norte-americana estourou, os mesmos se romperam. O
sistema capitalista que numa etapa de seu desenvolvimento alentou o crescimento
da escravidão, em outra criou uma nova combinação de forças que a destruiu.
A formação
combinada do velho e do novo, do mais baixo e do mais alto, da escravidão e do
capitalismo demonstrou não ser permanente nem indissolúvel; foi condicional,
temporária, relativa. A associação forçada dos dois tendia para a dissolução e
para um conflito crescente. Se uma sociedade anda para frente, a vantagem
preponderante corresponderá, em larga escala, à estrutura superior, que prosperará
à custa de características inferiores, superando-as e deslocando-as
eventualmente.
A Substituição de Classes
Uma das consequências
mais importantes e paradoxais do desenvolvimento desigual e combinado é a
solução dos problemas de uma classe através de outra. Cada etapa do
desenvolvimento social gera, coloca e resolve os seus próprios complexos
específicos de tarefas históricas. A barbárie, por exemplo, desenvolveu as
técnicas produtivas de cultivo das plantas, do pastoreio de animais e a
agricultura, como ramos de sua atividade econômica. Estas atividades foram
também pré-requisitos para a suplantação da barbárie pela civilização.
Na época
burguesa, a unificação de províncias separadas em estados centralizados
nacionais e a industrialização destes estados foram tarefas históricas
colocadas pelo surgimento da burguesia. Mas, em alguns países, o baixo
desenvolvimento da economia capitalista e a consequente debilidade da burguesia
toma insustentável a realização destas tarefas históricas da burguesia. No
coração da Europa, por exemplo, a unidade do povo alemão foi lograda desde 1866
a 1869 não pela burguesia ou pela classe operária, senão por uma casta social
já superada, os proprietários rurais “junkers” prussianos, encabeçados pela
monarquia Hohenzollern e dirigida por Bismarck. Neste caso, a tarefa histórica
da classe capitalista foi levada a cabo por forças capitalistas.
No século
atual, a China representa outro exemplo oposto, num nível histórico mais
elevado. Sob a dupla exploração de suas velhas relações feudais e da
subordinação imperialista, a China não podia ser unificada nem industrializada.
Tomou-se necessário nada menos que uma revolução proletária, (ainda que
deformada em seu começo) que, apoiando-se numa insurreição camponesa, abriu
caminho para a solução dessas tarefas burguesas longamente adiadas. Hoje em
dia, a China está unificada pela primeira vez e industrializa-se rapidamente.
Contudo, estas tarefas não foram levadas a cabo pelas forças capitalistas ou
pré-capitalistas, senão pela classe operária e sob sua própria direção. Neste
caso, as tarefas não completadas da abortada era de desenvolvimento capitalista
foram realizadas por uma classe pós-capitalista.
O
desenvolvimento extremamente desigual da sociedade fez necessária esta mudança
de papel histórico entre as classes: a grandiosidade da etapa histórica fez
possível a substituição. Como Hegel assinalou, a história recorre frequentemente
aos mecanismos mais indiretos e astutos para lograr seus fins.
Um dos
maiores problemas que a revolução democrático-burguesa dos Estados Unidos
deixou sem resolver foi a abolição dos velhos estigmas da escravidão, com a
integração sem restrições dos negros na vida norte-americana. Esta tarefa foi
parcialmente solucionada pela burguesia industrial do norte durante a guerra
civil. Este fracasso da burguesia industrial foi igualmente uma grande fonte de
problemas e dificuldades para os seus representantes. A questão que agora está
colocada é se os atuais governantes capitalistas ultrarreacionários dos EUA
poderão levar a cabo uma tarefa nacional que foram incapazes de completar em
sua época revolucionária.
Os
porta-vozes dos democratas e republicanos consideram necessário dizer que
poderão de fato cumprir esta tarefa; os reformistas de todo tipo juram que o
governo burguês poderá fazê-lo. É nossa opinião, contudo, que só a luta
conjunta do povo negro e das massas operárias contra os governantes
capitalistas será capaz de combater os restos da escravidão até sua conclusão
vitoriosa. Nesse sentido, a revolução socialista completará o que resta
realizar da revolução democrático-burguesa.
Os Inconvenientes do Progresso e os
Privilégios do Atraso
Aqueles
que fazem um culto do progresso puro creem que grandes conquistas num certo
número de campos pressupõem equivalente perfeição em outros. Muitos
norte-americanos tiram a conclusão imediata de que os Estados Unidos
ultrapassam o resto do mundo em todas as esferas da atividade humana,
justamente porque assim ocorre na tecnologia, na produção material. e no padrão
de vida. Contudo, na política e na filosofia, para não mencionar outros campos,
o desenvolvimento geral dos Estados Unidos não foi mais além do século XIX,
enquanto que países da Europa e Ásia, muito menos favorecidos economicamente,
estão muito além dos EUA nestes campos.
Nos
últimos anos do seu governo, Stálin tratou de impor a noção de que somente “cosmopolitas
sem raízes” podiam sustentar que o Ocidente superava a URSS em algum ramo do
esforço humano desde as invenções mecânicas até a ciência da genética. Esta
expressão do nacionalismo “pan-russo” não foi menos estúpida que a concepção
ocidental de que nada superior pode derivar da barbárie asiática da União
Soviética.
A verdade
é que cada etapa do desenvolvimento social, cada tipo de organização social,
cada nacionalidade, tem suas virtudes e defeitos essenciais, vantagens e
desvantagens. O progresso tem os seus inconvenientes: há que pagar por ele.
Avanços em certos terrenos podem significar retrocessos em outros. Por exemplo,
a civilização desenvolveu o poder de produção e a riqueza do gênero humano
sacrificando a igualdade e a fraternidade das sociedades primitivas que
suplantou. Por outro lado, sob certas condições o atraso tem seus benefícios.
Mais ainda, o que é progressivo numa etapa de desenvolvimento pode tornar-se
uma pré-condição para o estabelecimento de um atraso numa etapa subsequente ou
num terreno a ele ligado. E o que é um atraso pode tornar-se a base para um
salto adiante.
Parece
ridículo dizer a povos oprimidos pelo atraso, e que desejam vivamente
superá-lo, que o seu arcaísmo tem suas vantagens. Para eles o atraso aparece
como um mal evidente. Mas a consciência deste “mal” aparece em primeiro lugar
depois destes povos terem tomado contato com formas superiores de
desenvolvimento social. É o contato das duas formas, atrasada e adiantada, que
demonstra as deficiências da cultura atrasada. Na medida em que a civilização é
desconhecida, o selvagem primitivo mantém-se contente. É somente a justaposição
das duas que introduz a visão de algo melhor e planta as sementes do
descontentamento. Nesse sentido, a presença e o conhecimento da etapa superior
toma-se um motor do progresso.
A crítica
e condenação resultante da velha situação gera a urgência de superar a
disparidade no desenvolvimento e leva os atrasados para frente por fazer surgir
neles o desejo de superar os mais avançados. Cada pessoa que conhece o que é
aprender já sentiu isto pessoalmente.
Quando
povos atrasados fazem novas e imperativas reivindicações, a ausência de
instituições acumuladas e intermediárias pode ser positiva, pelos poucos
obstáculos que se apresentam para obstruir o avanço e a assimilação do novo. Se
as forças sociais existem e atuam efetiva e inteligentemente e no momento
oportuno, o que tem sido um inconveniente pode tomar-se uma vantagem.
Os Dois Cursos da Revolução Russa
A recente
história da Rússia dá o exemplo mais extraordinário desta conversão de um
inconveniente histórico num privilégio. No início do século XX, a Rússia era,
entre as grandes nações da Europa, a mais atrasada. Este atraso abarcava todos
os estratos, desde o campesinato até a dinastia absolutista dos Romanov. O povo
russo e as suas nacionalidades oprimidas sofriam, ambos, as misérias do
feudalismo decadente e do atraso do desenvolvimento burguês na Rússia.
Contudo,
quando chegou o momento da solução revolucionária destes problemas acumulados,
esse atraso demonstrou suas vantagens em muitos terrenos. Primeiro, o czarismo
estava totalmente separado das massas. Segundo, a burguesia era muito fraca
para tomar o poder em seu próprio nome e mantê-lo. Terceiro, o campesinato, ao
não receber satisfações por parte da burguesia, foi obrigado a virar-se para a
classe operária em busca de direção. Quarto, a classe operária não tinha formas
de atividade petrificadas ou sindicatos pelegos e burocracias políticas que a
fizessem retroceder. Foi mais fácil para essa jovem e enérgica classe, que
tinha muito pouco a perder e muito a ganhar, adotar rapidamente a mais avançada
teoria, o mais claro programa de ação e o mais elevado tipo de organização
partidária. A revolta camponesa contra o feudalismo, um movimento que no
ocidente da Europa caracterizou o surgimento de revoluções
democrático-burguesas, misturou-se com a revolução proletária contra o
capitalismo, exclusiva do século XX. Como Trotsky assinalou na “História da
Revolução Russa”, foi a conjunção destas duas revoluções diferentes que deu o
poder expansivo ao levante do povo russo e quê explica a extraordinária rapidez
do seu triunfo.
Mas os
privilégios do atraso não são inesgotáveis; estão limitados por condições
históricas e materiais. Efetivamente, o atraso herdado da Rússia dos czares
reagiu, na etapa seguinte de seu desenvolvimento, sob novas condições
históricas e sobre uma base social inteiramente nova. Os privilégios prévios
deveriam ser pagos nas próximas décadas pelos amargos sofrimentos, privações
econômicas e perda das liberdades que o povo russo suportou sob a ditadura
stalinista. O grande atraso que havia fortalecido a revolução e impulsionado as
massas russas à cabeça do resto do mundo, transformou-se então no ponto de
partida da reação política e da contrarrevolução burocrática, em consequência
da qual a revolução internacional fracassou na conquista dos países industriais
mais avançados. O atraso econômico e cultural da Rússia combinado com o atraso
da revolução mundial foram as condições básicas que permitiram à camarilha
stalinista golpear o partido bolchevique e à burocracia usurpar o poder
político. Por estas razões, o regime stalinista se converteu no mais
contraditório da história moderna, uma coagulação das mais avançadas formas de
propriedade e conquistas sociais surgidas da revolução, com uma ressurreição
das mais repulsivas características do domínio de classe. Fábricas gigantes,
providas das maquinarias mais modernas, eram mantidas por operários aos quais,
como os servos, não se lhes permitiam deixar seus lugares de trabalho; aviões
que voavam por intransitáveis caminhos cheios de barro; uma economia
planificada que funcionava junto a “campos de trabalho escravo”; colossais
avanços industriais paralelos à regressão política; enfim, o prodigioso
crescimento da Rússia como poder mundial acompanhado por uma igualmente
prodigiosa decadência interna do regime.
Contudo, o
desenvolvimento dialético da revolução russa não se deteve nesse ponto. A
extensão da revolução no Leste europeu e na Ásia, depois da Segunda Guerra Mundial,
a expansão da indústria soviética e o ascenso em número e nível de cultura dos
operários soviéticos, prepararam condições para uma transformação das velhas
tendências, o renascimento da revolução em uma etapa superior e a decadência e
parcial superação da calamidade do stalinismo. A primeira manifestação desse
movimento frente às massas na Rússia e seus satélites, com a classe operária na
sua direção, já foi anunciada ao mundo.
Desde o
discurso de Kruschev até a revolução húngara, produziu-se uma série contínua de
acontecimentos que demonstra a dialética do desenvolvimento revolucionário. A
cada passo da revolução russa, podemos ver a interação de seu atraso e de seu
progresso com a conversão de um no outro, de acordo com as circunstâncias
concretas do desenvolvimento internacional e nacional. Somente a compreensão da
dialética dessas mudanças pode dar-nos uma imagem exata do desenvolvimento
extremamente complexo e comtradit6rio da URSS, durante os 40 anos de sua
existência revolucionária. As dezenas de caracterizações ultra simplificadas da
natureza da atual sociedade moderna russa, que servem apenas para confundir o
movimento revolucionário, derivam de uma falta de compreensão das leis da
dialética, e do uso de métodos metafísicos nas análises do processo histórico.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado
é uma ferramenta indispensável para analisar a revolução russa e para precisar
seu crescimento e decadência através de suas complexas fases, seus triunfos,
sua degeneração e sua próxima regeneração.