5.2.16

Guerra civil síria, Estado Islâmico e a batalha por Kobane

Defender a Síria contra o imperialismo! Por um polo proletário independente!

[Este artigo foi originalmente escrito entre junho e julho de 2015. Devido a dificuldades internas, ele não pôde ser publicado e acabou se desatualizando parcialmente devido à rapidez dos acontecimentos na guerra civil síria. Não obstante, ele ainda responde a uma série de questões políticas que permanecem centrais nesse complexo conflito e também lida com as posições problemáticas de certas organizações que se reivindicam trotskistas. Por conta disso, decidimos publicá-lo acrescentando alguns comentários entre colchetes.]

Por Rodolfo Kaleb, junho-julho de 2015 [Atualizado e publicado em janeiro de 2016]

Durante os últimos anos, a população da Síria estava espremida entre uma ditadura de décadas, por um lado, e um conjunto de forças burguesas que queriam formar um novo regime nacional, por outro. Mais recentemente ela também tem se visto diante do avanço territorial dos fundamentalistas do Estado Islâmico e de ataques militares efetuados no país pelos Estados Unidos e outras potências imperialistas. Dedicamos esse texto a aprofundar algumas questões já abordadas há algum tempo, em nosso artigo de setembro 2012 (O Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários) e a atualizar certos aspectos, levando em conta esses novos acontecimentos.

Mais uma vez, frisamos aquilo que a maior parte da esquerda, inclusive muitos grupos que se reivindicam trotskistas, tem deixado de lado ao tratar da situação nesse país: a necessidade de uma linha de independência de classe diante das várias forças burguesas que no momento disputam o poder na região. Os marxistas não caem no mito de uma “revolução” supostamente incorporada e liderada pelos exércitos “rebeldes” que combatem o governo circunscritas aos interesses de frações da burguesia. Os rumos da guerra civil, embora não decididos mesmo depois de quase quatro anos, apontam a necessidade de formar um pólo da classe trabalhadora, oposto tanto ao governo Assad quanto às forças reacionárias que querem derrubá-lo para sua própria vantagem. De forma semelhante, o mesmo dilema da necessidade de independência de classe também está centralmente colocado na atual situação política em Kobane.

O caráter das principais forças em disputa na Síria

O regime Assad é um regime capitalista de partido único de duas décadas, que governa uma nação pobre confinada à ordem mundial do imperialismo. De todas as violações aos direitos humanos que aconteceram desde o começo da guerra, a maioria veio das mãos do governo sírio. Ele tem como aliado internacional a Rússia, com quem tem acordos comerciais relevantes. Da parte da classe trabalhadora, porém, tal regime ditatorial não merece nenhum apoio político.

Já a Coalizão Nacional Síria (CNS) tenta administrar as diferentes unidades do Exército Livre da Síria (ELS), que é um racha das forças armadas do país. Desde 2011, o ELS ganhou importantes posições no país, mas muitas foram perdidas de volta para Assad ou tomadas pelo Estado Islâmico. Em nosso artigo de 2012, nós explicamos a composição política e militar do CNS/ELS: as ligações dos seus componentes principais com os imperialistas e o seu programa burguês. Desde então, o ELS foi pouco a pouco dominado por forças de orientação religiosa (principalmente os líderes sunitas insatisfeitos com os aspectos seculares do regime alauita de Assad). O ELS também passou a operar junto com outras forças, tais quais a “Frente Islâmica” que se originou em 2014.

Apesar das ilusões na esquerda de que suas operações contra o regime Assad constituíam parte da “revolução síria”, deixamos claro naquele artigo que esses “rebeldes” não são uma força política que vá trazer conquistas para os trabalhadores sírios, menos ainda para as minorias nacionais do país.

Os Estados Unidos não conseguiram uma aliança duradoura com a maioria dos rebeldes, que não foram considerados “moderados” o suficiente. Washington tem tomado mais cuidado com seus aliados desde a desastrosa experiência na Líbia, onde muitas das armas enviadas acabaram caindo nas mãos de extremistas antiamericanos. Algumas unidades específicas do ELS, entretanto, receberam significativa ajuda militar dos Estados Unidos e, nesse momento, Obama já começou a treinar o seu próprio “grupo rebelde”, o qual deve ser denunciado enquanto uma tropa terrestre do imperialismo. Conforme noticiado:

Os EUA decidiram fornecer caminhões com metralhadora e rádios para chamar bombardeios aéreos a alguns rebeldes sírios moderados, disseram oficiais da Defesa. Mas não foi combinado o alcance de nenhum bombardeio – um reflexo das complexidades do campo de batalha na Síria.
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O plano chega enquanto os EUA preparam-se para começar a treinar rebeldes moderados, que estão travando uma luta em duas frentes contra os extremistas e o regime sírio. Oficiais da Defesa disseram que o treinamento vai começar em meados de março, na Jordânia, com um segundo acampamento previsto para abrir logo depois na Turquia.”

Os EUA darão a alguns rebeldes sírios a capacidade de chamar bombardeios, 17 de fevereiro de 2015.

[Janeiro de 2016: a entrada da Rússia no conflito a partir de outubro 2015, incluindo tanto ataques aéreos como envio de grandes quantidades de tropas terrestres – inicialmente favorecendo Assad e posteriormente dando apoio logístico e militar também a certas forças rebeldes – complexificou o cenário. Atualmente, tudo aponta para a construção de um governo de transição que contemple os interesses econômicos tanto da Rússia quanto dos EUA, bastante distintos, é bom que se diga, dos interesses dos trabalhadores e do povo sírio.]

Outro competidor reacionário na guerra civil síria que tem ganhado força recentemente é o autodenominado Estado Islâmico da Síria e do Levante (EI). Ele era antes parte de uma mesma operação militar fundamentalista com o Al-Qaeda na Síria (Frente Al-Nusra). Foi a Frente Al-Nusra quem rompeu relações com EI no início de 2014, afirmando que eles eram “intransigentes demais”.

A essa altura, o EI já tinha tomado importantes posições no Iraque. Financiado largamente por barões do petróleo muçulmanos dos países que também estavam dando apoio aos rebeldes, os chamados “Amigos da Síria” (Turquia, Catar e Arábia Saudita), o EI se beneficiou de suas ligações com a oposição síria para obter armas e recrutar combatentes. Chegou ao poder em importantes cidades iraquianas como ponta de lança de uma revolta sunita contra o governo xiita apoiado pelos Estados Unidos. A partir de então, o EI controlava um território maior do que o Al-Qaeda jamais foi capaz. Muitas das cidades sob seu poder tem uma grande produção petrolífera, que o EI exporta para financiar seu esforço expansionista. Ele está em guerra contra o governo iraquiano (que recebe ajuda de tropas americanas no terreno) com a intenção de construir um “Califado” sob seu rígido controle. Por volta da mesma época, o EI reforçou suas posições na Síria e tomou províncias no desértico leste do país, e toda a região de fronteira entre o Iraque e a Síria. Ele tem lutado ao mesmo tempo contra Assad e forças oposicionistas, especialmente unidades do ELS.

O EI parece ser a mais bem treinada e equipada das forças de oposição ao governo. Cerca de 8 milhões de pessoas vivem nas cidades que ele controla nos dois países e o grupo conseguiu estabelecer um tipo de “economia de guerra” na qual a população fica dependente deles para obter comida e outras necessidades, o que até agora garantiu uma colaboração passiva com a sua ocupação. Eles tem perseguido severamente minorias não-muçulmanas (e mesmo alguns grupos muçulmanos) e se gabam a respeito de escravizar e vender mulheres de outras religiões, assim como de massacrar grupos de aldeões não-muçulmanos. O EI controla cerca de um terço do território sírio, onde impuseram a Lei Islâmica / Sharia.

Consideramos o Estado Islâmico uma forma de reação fundamentalista que busca eliminar mesmo os direitos políticos, sociais e seculares mais básicos do povo. Se o EI for vitorioso em todo o território sírio, isso significaria a queda de muitas minorias étnicas e religiosas em uma condição de escravidão, ou sua simples execução. Um partido revolucionário de trabalhadores na Síria buscaria defender o povo oprimido e organizar as massas trabalhadoras das cidades e do campo contra esses bandidos cruéis. A sua derrota é essencial para os trabalhadores. Porém, nosso chamado para derrotar o EI não muda nossa denúncia e oposição à intervenção aérea conduzida pelos Estados Unidos.

Os imperialistas não apresentam uma alternativa de melhoria de vida para o povo sírio e já foram capazes de ações dezenas de vezes mais bárbaros que as do EI. O crescimento do EI é, em última instância, um subproduto da sua desastrosa ocupação do Iraque, apenas para dar um exemplo. Enquanto o governo e a grande mídia americana expõem as crueldades do Estado Islâmico, escondem os atos de terror cometidos pelos seus aliados na Síria, que também incluem muitas atrocidades (sem mencionar o alto número de vítimas e ferimentos provocados pela morte que cai do céu na forma de bombardeios).

Nós não temos nenhuma pena pelas derrotas que os imperialistas sofrerem no Iraque e na Síria. Não nos esquecemos dos crimes cometidos pelos imperialistas no Iraque (incluindo as mortes de cerca de 120.000 civis iraquianos) e consideramos sua expulsão do Oriente Médio, assim como a derrota de suas “tropas terrestres”, como uma prioridade. Mas apesar do fato de que o EI tem sido o alvo dos bombardeios imperialistas, a sua conquista de cidades iraquianas e sírias com objetivo de estabelecer regimes de terror não é nenhuma forma de “luta anti-imperialista” e sim uma ação reacionária.

As “boas intenções” de Obama em bombardear o EI para supostamente salvar minorias na Síria são mentirosas. A intervenção americana tem o propósito único de garantir seu poder sobre o país. Qualquer um que duvide das intenções dos EUA (e de outras grandes potências) na Síria deveria olhar para os “grandes experimentos de democracia” que se tornaram a Líbia e o Iraque. Os bombardeios americanos tem a intenção de ganhar tempo e conter o EI (ao mesmo tempo em que o usa para cansar o regime Assad) enquanto Washington organiza melhor as forças leais a si no território sírio.

[Janeiro de 2016: Atualmente, esse parágrafo parece ter se desatualizado diante da aparente decisão dos EUA, França e Grã-Bretanha de destruir o EI, pressionados pelos bombardeios russos em defesa de Assad e pelo alarme mundial com relação aos fundamentalistas. Porém, na altura em que esse texto foi escrito, tudo indicava que a estratégia dos EUA girava em torno de “administrar” a situação, deixando o EI enfraquecer Assad e buscando fortalecer as posições dos rebeldes mais “moderados”.]

Além de levar em conta as ameaças dos imperialistas de um lado e do Estado Islâmico de outro, não se pode perder de vista que uma revolução proletária na Síria só pode vencer por cima do cadáver morto da brutal ditadura de Assad. O ditador e seu partido impuseram a ordem capitalista sobre a classe trabalhadora por décadas, com os mais brutais métodos. Seria prioritário organizar autodefesas entre os trabalhadores, especialmente das minorias perseguidas contra os vários exércitos em disputa, garantindo assim um polo politicamente independente das forças reacionárias que lutam pelo poder.

A esquerda sem independência de classe

Os grupos na esquerda que afirmam defender a vitória de uma inexistente “revolução síria” contra Assad usam a ausência de um processo como esse como fachada para apoiar os esforços do Exército Livre da Síria. O argumento principal é de que muitas das unidades que nele participam não são subordinadas à Coalizão Nacional Síria. Seriam, em vez disso, forças populares emergindo das ruas e dos protestos da Primavera Árabe.

Essa é a posição, por exemplo, do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU), cuja seção no Brasil é a corrente Insurgência, do PSOL. Em seu site internacional, foi publicada uma entrevista com um membro de um desses grupos aderentes do ELS e que se reivindicaria marxista. Quando foi perguntado sobre a cooperação com outras unidades do ELS, o combatente respondeu:

Existe cooperação e coordenação, mas de forma limitada. Por um lado por conta das diferentes visões e objetivos, ou disparidades entre posições devido à localização geográfica onde os camaradas estão lutando e a natureza das outras organizações. Por outro, essas organizações em geral não aceitam ninguém mais....”
Nossa falta de armas nos põe em uma situação de fraqueza”, 18 de janeiro de 2015.
Disponível em: http://tinyurl.com/nhjea3b

Não surpreende a dificuldade de coordenação com as outras unidades do ELS, já que muitas delas são lideradas por oficiais leais e subordinados ao CNS, e através deste aos seus patrões imperialistas. Isso para não mencionar aquelas unidades que mencionamos, que recebem treinamento e armas diretamente dos imperialistas. Isso sem esquecer os vários grupos islâmicos que também estão sob o teto do ELS.

O ELS é certamente um exército heterogêneo. Mas a pergunta que o site do SU não fez a esses combatentes, e que deveria ser o primeiro questionamento é: por que essa organização (que o SU considera “marxista revolucionária”) está trabalhando lado a lado com esses tipos? Por que eles, em vez disso, e já que afirmam representar a classe trabalhadora síria, não organizam uma brigada independente, oposta aos elementos que estão mancomunados com os imperialistas para vender o país caso consigam derrotar Assad?

De certa forma, o dilema desses combatentes é o mesmo dilema do SU e das demais correntes que apoiam os rebeldes contra Assad. Não querem defender uma posição proletária independente do CNS e do ELS e só veem possibilidade imediata de derrubar o regime junto com essas forças reacionárias. Por isso, abandonam qualquer pretensão de uma política marxista e passam a embelezar a natureza e o programa do ELS, ainda que criticando sua liderança.

Conclusão muito semelhante é compartilhada por outros grupos que dizem reivindicar o trotskismo, como aquela da morenista Unidade Internacional dos Trabalhadores, cuja seção brasileira é a corrente CST, do PSOL, com a qual polemizamos de forma mais extensa em artigo de outubro de 2012 (O Morenismo e a Posição da CST/UIT na Síria), ou como pela também morenista Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT – dirigida pelo PSTU brasileiro).

Apesar da aderência inevitável de elementos iludidos por uma ideologia pretensamente “democrática”, reafirmamos que o ELS é, como um todo, controlado por oficiais do CNS e outras forças burguesas. Não há nada para ser ganho para a classe trabalhadora ao ajudar esse exército. A não ser que o SU e outros grupos, como a UIT ou a LIT, acreditem em algum tipo de “dinâmica” mágica que vá colocar a classe trabalhadora no poder ou numa posição melhor no instante em que Assad cair pelas mãos dos rebeldes ou do imperialismo. Já vimos esse filme na Líbia, na Ucrânia e em muitas outras ocasiões em que tais grupos apoiaram o “movimento de massas” com uma liderança reacionária.

A questão curda e a batalha por Kobane

No cenário já complexo que é a guerra civil na Síria, as coisas ficam ainda mais densas ao levar em conta o elemento curdo. O Curdistão é a maior nação sem Estado no mundo. Estamos falando de cerca de 30 milhões de pessoas divididas pelo território da Turquia, Irã, Iraque, Armênia e uma pequena região no norte da Síria (Rojava). Tal ordem de coisas é um legado da prática de “dividir para dominar” do imperialismo britânico após a queda do Império Otomano.

Os marxistas defendem os direitos nacionais dos curdos, incluindo o direito à autodeterminação, ao uso do idioma em todas as esferas da vida e contra todas as formas de segregação. Mas isso não significa que consideramos a separação territorial das regiões curdas como uma “solução” para os problemas dos trabalhadores dessa nacionalidade. Tomaríamos o lado curdo em uma guerra pela independência ou por autonomia regional (incluindo o apoio militar) se esse for o desejo desse povo em qualquer momento.

Ao mesmo tempo, a separação nacional é, para os marxistas, um interesse subordinado à luta proletária. Há questões políticas de maior prioridade, como a independência de classe dos trabalhadores e a defesa das nações oprimidas contra os ataques imperialistas. Eis um exemplo ilustrativo. Em 2003, quando os EUA atacaram o Iraque, os líderes nacionalistas burgueses do Curdistão iraquiano apoiaram a invasão imperialista contra o regime de Saddam Hussein, em busca de promessas de maior autonomia regional.

Defendemos todo e qualquer ganho de autonomia para a população curda. Mas quando o Peshmerga (o exército dos curdos iraquianos) estava lutando sob comando do exército americano, não era uma força pela independência curda contra Bagdá, mas um braço do projeto imperialista de subjugar toda a região. Assim, nos oporíamos aos esforços dos capitalistas curdos para apoiar a invasão imperialista, ao mesmo tempo em que seguiríamos defendendo os direitos nacionais curdos.

Hoje, uma situação parecida ressurge no Iraque, com a coalizão liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico. Os principais partidos políticos curdos no território iraquiano, KPD (Partido Democrático Curdo) e PUK (União Patriótica do Curdistão), apesar de sua suposta rivalidade, usam sua posição à frente do governo regional no norte do Iraque para apoiar os imperialistas.

Mas enquanto no Curdistão iraquiano a cena é dominada pelos capachos imperialistas, na Síria a força política mais influente entre a população curda é atualmente o Partido da União Democrática (PYD), que é o associado sírio do antes maoista Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que opera na Turquia. Em 2012, as tropas leais a Assad se retiraram completamente das regiões curdas, o território conhecido como Rojava. Não está claro se devido a limitações militares ou como uma tentativa demagógica de ganhar apoio dos curdos, ou ambos. E desde então Rojava basicamente ficou sob controle do PYD. Através de sua organização militar, as Unidades de Proteção Popular (YPG), o PYD entrou em confrontos com ambos o regime Assad e a oposição, em diferentes ocasiões. Mas desde que o avanço do Estado Islâmico no norte começou, o YPG tem entrado consistentemente em choque com ele.

As investidas do EI no território sírio colocaram-no em conflito com os curdos em julho de 2014 em Kobane (um dos três cantões sob o governo do PYD próximos da fronteira com a Turquia). Isso chamou atenção mundial e a resistência curda ganhou vasta simpatia, ficando conhecidos como os “revolucionários que enfrentam o Estado Islâmico”. O EI finalmente foi derrotado na região no começo de 2015 através de uma combinação da luta incansável dos curdos (que estiveram sempre em inferioridade técnica) e bombardeios imperialistas. Kobane ficou sitiada por meses, durante os quais muitos grupos na esquerda (especialmente alguns anarquistas) falavam de um caráter revolucionário da resistência curda.

O PYD é um partido fundado em 2003 por ativistas simpatizantes do PKK na Síria. Ele era considerado pelo governo sírio como um fator de instabilidade devido a seu apoio popular e por operações clandestinas nas regiões curdas. Sua principal fonte de orientação ideológica é o PKK, que foi criado em 1978 como um grupo maoista dedicado à resistência armada contra a opressão da população curda na Turquia e que tem uma longa história de resistência contra o governo.

Mas, aparentemente, o PKK não é mais um aderente do maoismo, com suas práticas stalinistas de perseguição a oposicionistas internos e um programa de “guerra popular” cambaleando entre um programa democrático burguês de “Nova Democracia” e a perspectiva de reproduzir um regime burocrático de economia estatizada, como a China de Mao. De acordo com muitos relatos, desde a prisão de Abdullah Ocalan (seu líder histórico) em 1999, o PKK tem passado por uma transformação programática rumo ao que é descrito pelo próprio Ocalan como “Confederalismo Democrático”. Esse é um ponto de vista inspirado por autores libertários e que busca a construção de “autogovernos populares” sem Estado, em cada localidade.

O PKK ainda é considerado pela OTAN e pelo governo turco como uma “organização terrorista” e os marxistas por todo o mundo tem o dever imperativo de defender o grupo contra todos os ataques vindo do brutal regime de Erdogan. Com exceção de alguns breves períodos de trégua (o último dos quais vem desde 2013), o PKK tem continuamente lutado contra o regime turco por autonomia para as regiões curdas. Mas embora seja difícil dizer quão consolidado é esse giro (é preciso lembrar que o PKK segue uma organização clandestina), ele parece ter mudado definitivamente a feição do grupo.

Para os trotskistas, os trabalhadores e camponeses precisam construir um poder baseado em suas próprias forças para esmagar a dominação militar, política e econômica da burguesia e impedir suas tentativas de retornar ao poder após uma insurreição vitoriosa. Esse autêntico “governo de trabalhadores” deve abranger todo o território e se basear em representantes eleitos democraticamente pelos proletários e camponeses (e revogáveis pelas assembleias que os elegeram). Essa é a fórmula capaz de equilibrar a natureza local da gestão democrática direta com os interesses de grande escala da classe trabalhadora em todas as áreas.

Por último, mas não menos importante, esse governo deve dar apoio internacionalista e suporte material e político aos proletários dos outros países nas lutas para derrotar as “suas” burguesias. O socialismo não pode ser alcançado em bases nacionais e, em última instância, nenhum governo de trabalhadores pode sobreviver isolado em um mundo dominado pelo imperialismo. O programa político do PKK/PYD parece passar por cima da necessidade de construir essa “ditadura proletária” baseada em uma economia coletivizada e no poderio militar centralizado dos trabalhadores.

Como foi mencionado, o PYD tem o controle militar da região de Rojava. Ele adotou uma “Carta do Contrato Social de Rojava” no início de 2014 e esse documento constitucional não faz nenhuma menção ao socialismo, controle coletivo dos meios de produção ou democracia operária. Trata-se de uma combinação confusa de participação comunitária e manutenção da propriedade privada. O artigo 41 assegura que “Todos tem o direito de possuir propriedades e a posse pessoal é garantida”, enquanto o artigo 42 diz que o sistema econômico busca “garantir a economia participativa enquanto promove a competição de acordo com o princípio da gestão democrática ‘A cada um de acordo com seu trabalho’.”

[Janeiro de 2016: Com a derrota do EI, o PYD se estabeleceu em uma região onde todos os partidos e governos burgueses haviam sido derrotados ou se retirado. Ele não é um partido burguês, mas uma organização baseada na mobilização de trabalhadores e camponeses da região. As condições são as mais propícias para o estabelecimento de um governo proletário, com controle democrático dos trabalhadores e camponeses sobre os meios de produção, a política e o exército. No entanto, vemos que o PYD não tem clareza sobre a natureza do regime que ele quer construir. Embora tenha um discurso democrático, a manutenção da propriedade capitalista coloca limites claros de desigualdade e de democracia na sociedade. Diante do que aconteceu até o momento, não existe nenhuma garantia de que o governo do PYD romperá com a burguesia de forma definitiva. Os lutadores da região devem lutar por uma direção revolucionária e combater as vacilações da atual.]

Durante e após a batalha contra o Estado Islâmico em Kobane, o PYD também propagou perigosas ilusões nas unidades Peshmerga do governo regional curdo no Iraque (das quais recebeu armas) e na intervenção aérea dos EUA. Eles soltaram uma declaração pública “agradecendo” a ambos por sua luta contra o EI, durante a qual o PYD deu aos EUA aconselhamento militar tático (onde realizar os bombardeios). Um líder do PYD, Saleh Muslim, expressou essa postura em várias declarações à imprensa:

De acordo com Muslim, a coalizão internacional ‘salvou as vidas de muitos civis’ na sua guerra contra o EI.… Ele também agradeceu à coalizão internacional liderada pelos EUA por apoiar os curdos em sua dificuldade e por ajudar as forças do YPG a resistirem ao grupo radical EI. ‘Tais operações reforçam a relação entre os curdos e os Estados que defendem a democracia e a paz’, concluiu Muslim.”
Curdos sírios instam coalizão liderada pelos EUA a intensificar os ataques contra o EI em Kobane”, 13 de outubro de 2014.
Disponível em: http://tinyurl.com/pkzaufb

Apesar disso, acreditamos que os marxistas deveriam defender Kobane contra o avanço dos reacionários fundamentalistas do EI. O que os trabalhadores e militantes com intenções revolucionárias em Rojava precisam urgentemente é de uma orientação política que seus líderes não tem a oferecer: a construção de um poder direto dos trabalhadores. Mais importante, é preciso garantir que não se desenvolvam expectativas ou ilusões no caráter dos governos burgueses do Curdistão iraquiano ou nos bombardeios americanos.

Os EUA tinham a intenção de conter o avanço do EI em Kobane (na fronteira com a Turquia) para os seus próprios propósitos reacionários, e não “ajudar” o povo curdo. Tampouco o governo americano está entre os defensores da “democracia e paz” no mundo. Não esqueçamos que Washington é um grande aliado do regime turco de Erdogan, que durante todo o tempo fez de tudo para impedir que o PYD recebesse ajuda das bases do PKK na Turquia. Não condenamos o PYD por ter conseguido armas de qualquer fonte que as estivesse oferecendo (desde que sem imposição de condições). E ele certamente tinha o direito de se beneficiar taticamente do fato de que o EI estava sendo alvo dos imperialistas, desde que tivesse clareza sobre a natureza dos bombardeios.

O sectarismo de parte da esquerda contra os lutadores de Kobane

Alguns grupos na esquerda se basearam nas posições oportunistas da liderança do PYD para justificar tomar o lado do Estado Islâmico (!!!) em Kobane. Esse é o caso da seita degenerada (mal) disfarçada de organização trotskista que é a Liga Espartaquista dos EUA. Em uma edição do seu jornal, eles expuseram suas razões:

Forças do governo iraquiano e peshmerga curdos no Iraque estão novamente conduzindo operações militares conjuntas com os EUA, como fizeram por anos sob a ocupação. Mais recentemente, nacionalistas curdos sírios também selaram uma aliança traiçoeira com os EUA na batalha por Kobane no norte da Síria, agindo como auxiliares de bombardeios dos imperialistas e coordenando movimentos militares como um todo. O fato de que todas essas forças são ‘tropas terrestres’ para a intervenção imperialista significa que os marxistas revolucionários [sic] tem seu lado militar com o EI quando ele atacar os imperialistas e seus agentes, incluindo os nacionalistas curdos sírios, o peshmerga, o governo de Bagdá e suas milícias xiitas.”
Abaixo a guerra dos EUA contra o EI!, 31 de outubro de 2014.
Disponível em: http://www.icl-fi.org/english/wv/1055/isis.html

Em sua investida para conquistar Kobane, o Estado Islâmico não estava lutando contra um reduto imperialista, já que não havia quaisquer tropas dos EUA no terreno. O YPG era a única força combatendo os fundamentalistas com armas nas mãos em Kobane e, apesar das posições vacilantes de sua direção, ele não pode ser seriamente considerado uma “tropa terrestre” dos imperialistas. O YPG resistiu ao cerco do EI em Kobane por muitos meses mesmo antes de os imperialistas se envolverem.

Os revolucionários devem criticar as ilusões propagadas por Muslim e pelo seu “agradecimento” cheio de ilusões à coalizão internacional. Mas o que está em questão para determinar que lado tomar em Kobane é se essas posições ou a colaboração militar tática com os imperialistas tornam o PYD uma força subordinada aos EUA em seus esforços para subjugar a Síria.

Acreditamos que o exército americano se aproveitou do conflito em Kobane para bombardear o EI, mas não tinha a pretensão de usar o PYD, que ele ainda considera uma organização terrorista, como uma alavanca para controlar o norte da Síria. Afinal, terminada a batalha, os EUA não foram capazes de ter qualquer controle real sobre Rojava. O PYD, por sua vez, estava se beneficiando dos bombardeios dos EUA, mas não está integrado e subordinado aos esforços militares dos imperialistas na região.

Portanto, a batalha por Kobane não consistiu em agentes dos EUA lutando contra o Estado Islâmico (como quer a Liga Espartaquista), mas sim uma força de resistência curda coordenada (mas não subordinada) com bombardeios americanos, lutando contra os reacionários fundamentalistas. Em tal luta, os revolucionários tinham um lado – com o PYD/YPG contra o EI, enquanto ao mesmo tempo diziam aos trabalhadores e militantes no Curdistão sírio a não confiar que os EUA ou o Peshmerga pudessem ser considerados, mesmo momentaneamente, seus “aliados”.

O que essa posição demonstra é que a Liga Espartaquista perdeu completamente seu senso de proporção (se é que tinha algum). A vitória do YPG em Rojava não é a mesma coisa que a vitória dos rebeldes na Líbia em 2011. Não se tratou de uma queda de governo orquestrada pelos imperialistas para colocar um fantoche em seu lugar. O resultado foi a manutenção no poder de um partido curdo com bases populares que havia subido ao poder como fruto da própria dinâmica da guerra civil. A resistência vitoriosa contra o EI foi um contraponto importante para evitar o avanço da reação fundamentalista.

Por resistências proletárias em meio à guerra civil

Diante do elemento de sectarismo religioso presente nas guerras que se desenrolam no Iraque e na Síria (envolvendo a rivalidade sunita/xiita) e o derramamento de sangue de ambos os lados, existe espaço para o surgimento de uma resistência não-sectária da classe trabalhadora contra esses crimes. Se acompanhada do impulso revolucionário de expulsar os imperialistas do Oriente Médio, impedir a vitória dos reacionários fundamentalistas e defender os curdos e outras minorias étnicas, essa posição tem potencial para desenvolver-se rapidamente entre os trabalhadores que não veem nenhuma alternativa entre os competidores pelo poder.

Não existe na Síria nenhum partido de massas da classe trabalhadora (nem mesmo reformista) devido a décadas de opressão do regime de Assad sobre o país. A única federação sindical legalizada é inteiramente submetida à estrutura de Estado controlada pelo Partido Socialista Árabe Baath (o partido do regime). Uma posição de contraste com as que estão postas pela guerra iria imediatamente ganhar simpatia da classe trabalhadora, mesmo se inicialmente representada apenas por um grupo pequeno de quadros programaticamente sólidos e dedicados. Entretanto, embelezar qualquer das forças principais da disputa só pode levar a desastres.

Ações de solidariedade operária sem fronteiras são uma pedra de toque do trotskismo e seriam essenciais para preparar os trabalhadores e camponeses sírios, iraquianos, turcos e curdos contra “suas” respectivas classes dominantes e as maquinações ferozes dos imperialismos. A única forma de assegurar uma paz de longo prazo na região é através de revoluções socialistas vitoriosas que ponham fim às rivalidades reacionárias entre clãs capitalistas competidores e sua constante dependência de alianças traiçoeiras com os imperialistas.

Além disso, é preciso começar o quanto antes a construção de um partido revolucionário dos trabalhadores na Síria. Junto a um programa socialista completo de controle operário sobre as principais indústrias e revolução agrária no campo, uma organização trotskista na Síria também defenderia um conjunto de demandas democráticas contra o regime e seus adversários reacionários. Isso demonstraria o desejo sem compromissos dos revolucionários em construir uma democracia proletária, em oposição às falsas promessas “democráticas” dos imperialistas.