Dos
Arquivos do Trotskismo
A
Declaração dos Comunistas Internacionalistas de
Buchenwald
Este
artigo introdutório, seguido do documento original dos trotskistas de Buchenwald,
foi originalmente impresso em inglês na revista Spartacist
(número 26) em 1979. A tradução para o português
foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de
2011.
É
com grande satisfação que nós publicamos pela
primeira vez em nossa língua este documento comovente e
historicamente importante. A “Declaração dos
Comunistas Internacionalistas de Buchenwald” é um manifesto
programático feito por quadros e simpatizantes do movimento
trotskista que sobreviveram ao campo de concentração
nazista. Nem a tortura fascista nem a perseguição
stalinista quebraram a coragem política desses camaradas.
Originalmente
escrita em alemão, a declaração foi publicada
pouco mais de uma semana depois que Buchenwald foi liberada, em abril
de 1945. A sua terceira seção foi publicada em uma
edição de 1946 de Neuer Spartakus, a primeira
imprensa trotskista em língua alemã publicada após
a guerra. Esta parte do documento foi reimpressa em outubro de 1974
em Die Internationale, jornal dos pablistas na Alemanha
Ocidental. Mais recentemente, duas traduções francesas
diferentes do texto integral foram publicadas. Uma apareceu no
Bulletin (número 10) do Centro de Estudos e Pesquisas
sobre os Movimentos Trotskista e Revolucionário Internacionais
(CERMTRI). A segunda foi na Critique Communiste (número
25, novembro de 1978), jornal dos pablistas franceses. A nossa
tradução é do original em alemão que foi
obtido dos arquivos dos CERMTRI em Paris. Esta introdução
é largamente baseada nos prefácios ao texto que
apareceram no Bulletin do CERMTRI e na Critique Communiste.
A
“Declaração dos Comunistas Internacionalistas de
Buchenwald” foi o trabalho colaborativo de quatro camaradas: os
dois austríacos Ernst Federn e Karl Fischer, e Marcel
Beaufrere e Florent Galloy, trotskistas francês e belga
respectivamente. Como muitos outros trotskistas alemães e
austríacos, Federn e Fischer foram capturados pelos nazistas
mesmo antes do início da segunda guerra imperialista. Ambos
foram primeiramente presos pelas suas atividades revolucionárias
na Áustria em 1935. Federn foi libertado, mas Fischer e outros
trotskistas austríacos foram aprisionados e julgados em Viena
em 1937. Sentenciados a cinco anos de prisão, eles foram
libertados com a anistia decretada na véspera da anexação
da Áustria pela Alemanha em fevereiro de 1938 e escaparam para
a Bélgica e depois para a França. Federn foi preso
novamente em 1939 e mandado para o campo nazista de Dachau e depois
transferido para Buchenwald.
Muitos dos
quadros trotskistas que iriam se juntar a Federn em Buchenwald
passaram os primeiros anos da guerra na clandestinidade, organizados
entre trabalhadores e soldados alemães sob a ocupação
nazista. A sua luta internacionalista fez das dispersas células
trotskistas alvos não apenas da Gestapo, mas também dos
stalinistas. Marcel Beaufrere foi tipicamente um daqueles militantes
trotskistas cujo trabalho clandestino foi punido pelos nazistas com
prisão nos campos de extermínio. Colocado para dentro e
para fora da prisão desde 1939, quando foi inicialmente preso
por “provocar desobediência no exército”, Beaufrere
trabalhou de forma próxima com Marcel Hic, que havia sido bem
sucedido em realizar uma publicação regular, La
Verite [A Verdade], bem debaixo do nariz dos nazistas. Em
setembro de 1943, Beaufrere foi encarregado de liderar a célula
trotskista na Bretanha, onde o jornal clandestino Albeiter und
Soldat [Trabalhador e Soldado] era impresso e distribuído
entre as forças armadas alemãs. Apesar da repressão
feroz (em outubro de 1943 a Gestapo capturou e fuzilou cerca de 65
membros da célula, incluindo 30 soldados e marinheiros
alemães), a propaganda trotskista na Alemanha continuou a ser
produzida em grande quantidade (com uma circulação que
chegava a 10 mil cópias) e foi disseminada até agosto
de 1944. Beaufrere foi finalmente preso em outubro de 1943, torturado
e enviado para Buchenwald.
Muitos dos
militantes trotskistas ativos nesse trabalho não viveram para
ler o documento produzido pelos camaradas de Buchenwald. Marcel Hic
sobreviveu a Buchenwald apenas para morrer em Dora em 1944. Robert
Cruau, o militante de 23 anos que liderou a célula trotskista
dentro das forças armadas alemães em Brest, foi preso
em 1943 e, de acordo com a introdução da Critique
Communiste feita por Rodolphe Prager:
“Um pouco após
a sua prisão, Robert Cruau forjou uma fuga com o objetivo de
levar à própria morte. Ele queria ter certeza de que
não falaria, e ele era o alvo primário dos
interrogadores.”
E Abram
Leon, talentoso autor do ainda definitivo trabalho trotskista sobre a
questão judaica e líder da célula trotskista
belga dentro das forças armadas alemães, foi preso em
junho de 1944 quando chegou na região de Charleroi para
assumir o controle do trabalho clandestino entre os mineiros, que
cobria cerca de 15 minas e incluía a publicação
de Le Reveil des Mineurs [O Despertar dos Mineiros]. Torturado
pela Gestapo, Leon foi exterminado numa câmara de gás em
Auschwitz aos 26 anos de idade.
Apesar do
terror nazista, os trotskistas nos campos de concentração
buscaram continuar lutando pelo seu programa revolucionário.
Inúmeros relatos testemunham o heroísmo e coragem da
célula trotskista em Buchenwald. De acordo com uma entrevista
que Beaufrere deu para um representante da iSt [tendência
Espartaquista internacional] em janeiro de 1979, quando os nazistas
estavam se preparando para abandonar Buchenwald às forças
dos Aliados que se aproximavam, os comandantes do campo difundiram
através do sistema de alto-falante uma ordem para que os
prisioneiros se reunissem. Reconhecendo que era muito provável
que ocorresse uma concentração e extermínio dos
judeus no fim, Beaufrere e o seus camaradas imediatamente começaram
a clamar aos presos para que não seguissem para a assembleia,
e que os presos políticos trocassem os seus emblemas vermelhos
de identificação com os judeus, que eram obrigados a
usar estrelas amarelas no seu uniforme. Assim, um extermínio
em massa quase certo de judeus (e talvez também de comunistas)
foi parcialmente evitado.
A
autoridade política que os Comunistas Internacionalistas
ganharam dentro do campo não desempenhou menor papel na sua
sobrevivência. Como foi o caso em outros campos nazistas, em
Buchenwald os trotskistas viviam sob constante ameaça de
assassinato pelos stalinistas, que na maioria dos casos controlavam
os aparatos militares clandestinos formados em alguns campos. De
acordo com a entrevista com Beaufrere, a célula stalinista
francesa em Buchenwald lhe reconheceu como um trotskista desde a sua
chegada em janeiro de 1944 e prometeu matá-lo. Em toda a
parte, os trotskistas foram de fato assassinados pelos stalinistas –
por exemplo, Pietro Tresso (Blasco), um líder da organização
trotskista clandestina (o PCI), “desapareceu” depois que a
incursão organizada pelos stalinistas libertou cerca de 80
lutadores da resistência em Puy, um campo nazista na França.
Em Buchenwald os stalinistas franceses usaram as suas posições
organizativas para encarregar Beaufrere de tarefas que iriam quase
certamente levar à sua morte. Beaufrere foi salvo dessa
“sentença de morte” pela solidariedade ativa das células
stalinistas alemã e tcheca, no fim ganhando apoio também
de outras células (que eram organizadas ao longo de linhas
nacionais), incluindo o grupo russo.
O que
permitiu a Beaufrere ganhar a simpatia e o respeito desses quadros
stalinistas foi em grande medida a posição
anti-chauvinista dos trotskistas. Evidentemente, muitos dos
stalinistas alemães e austríacos eram repelidos pelo
chauvinismo anti-alemão dos seus “camaradas” do PC
francês. (Na época da “liberação” da
França pelos Aliados, L'Humanite [jornal dos
stalinistas franceses] correu manchetes tais como “Cada um pegue um
alemão!”). Após a sua chegada em Paris em 1945,
Beaufrere relatou para a imprensa trotskista francesa o impacto da
declaração de Buchenwald sobre os stalinistas alemães:
“Alguns velhos
comunistas alemães vieram encontrar nossos camaradas
trotskistas [em Buchenwald], relembrou Beaufrere em seu
retorno a Paris, e disseram a eles: chegou a hora, vocês devem
se mostrar publicamente, e pediram uma discussão política
preliminar. Um texto de nossos camaradas alemães que nos
declarava a favor de uma república soviética alemã
teve um profundo impacto nos camaradas comunistas alemães, que
pediram para manter contato com os trotskistas.”
La
Verite, 11 de maio de 1945, citado na Critique Communiste,
novembro de 1978.
A
declaração de Buchenwald não deixa de ter suas
fraquezas. Do ponto de vista do trotskismo, o manifesto contém
formulações sobre a questão da URSS e da Quarta
Internacional que são vagas, senão simplesmente
ambíguas. Assim, enquanto a burocracia soviética recebe
referência como uma casta, a declaração evita
caracterizar a URSS como um Estado operário degenerado. Ela
coloca uma interrogação bastante explícita sobre
a evolução futura do regime e em nenhum lugar chama
pela defesa militar incondicional da URSS.
Da mesma
forma, enquanto “IV Internacional” aparece no fim do documento
entre parênteses, a Quarta Internacional e o trotskismo não
são mencionados no texto. Ao invés disso, a declaração
afirma que “um novo partido revolucionário mundial”
precisa ser criado.
Essas não
foram formulações precipitadas, mas o resultado de
muita discussão. Beaufrere e Fischer tinham posições
amplamente divergentes sobre o caráter de classe da URSS e
sobre a Quarta Internacional. Mesmo antes da guerra, Fischer havia
adotado a análise do “Capitalismo de Estado” para a URSS e
seu grupo havia crescido cada vez mais afastado da Quarta
Internacional.
A
declaração de Buchenwald representou um compromisso.
Karl Fischer explicou em 29 de maio de 1946 em uma carta que para
seus camaradas em Paris que:
“Ela foi composta
conjuntamente por Federn, Marcel Beaufrere, Florent Galloy e eu. No
que diz respeito à Rússia e aos trotskistas, eu tive
que entrar em um compromisso, já que de outra forma nada teria
saído.”
Citado no
Bulletin do CERMTRI, número 10.
Também
deve-se notar que a declaração prediz bastante
categoricamente uma erupção iminente de grandes
rivalidades inter-imperialistas entre os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha. Tal projeção, é claro, se
revelou falsa pouco depois. Entretanto, a questão envolvida
não era nova. Em meados dos anos de 1920, Trotsky analisou as
bases de possíveis futuras rivalidades inter-imperialistas
anglo-americanas. Mas no fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados
Unidos estavam claramente emergindo como um poder imperialista
hegemônico.
Mesmo com
essas fraquezas, a declaração de Buchenwald é,
no geral, uma declaração principista e poderosa de
internacionalismo revolucionário, uma afirmação
do otimismo revolucionário na capacidade da vanguarda
comunista para liderar o proletariado ressurgente para longe da crise
de liderança e rumo à conquista do poder.
***
I.
A Conjuntura Internacional do Capitalismo
No
fechamento da segunda guerra imperialista, Itália, Alemanha e
Japão perderam a sua altura como grandes potências
imperialistas, enquanto a da França foi severamente minada.
Os
antagonismos e conflitos imperialistas entre os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha dominam a conjuntura da política
imperialista mundial.
No início
dessa guerra imperialista, a Rússia emergiu do seu isolamento
e hoje se confronta com a tarefa de consolidar política e
economicamente os seus sucessos militares em oposição
aos apetites das potências imperialistas vitoriosas.
Apesar dos
seus enormes esforços, a China permanece um peão das
grandes potências imperialistas, uma consequência
inevitável da vitória da burguesia chinesa sobre o
proletariado chinês.
A
unanimidade disposta de forma tão ostentosa nas conferências
de paz imperialistas tem o objetivo de enganar as massas ao esconder
os antagonismos inerentes entre as potências capitalistas.
Entretanto, interesses militares coincidentes no que diz respeito à
Alemanha não podem prevenir a explosão de antagonismos
dentro do campo dos Aliados. A esses antagonismos deve ser adicionada
a crise inevitável e o tumulto social do modo de produção
capitalista decadente.
Uma análise
precisa da situação internacional, usando o método
do marxismo leninista é a precondição
indispensável para uma linha revolucionária bem
sucedida.
II.
A Situação Internacional da Classe Trabalhadora
Esse
desenvolvimento torna possível para o proletariado alemão
se recuperar rapidamente da sua profunda derrota e novamente se
posicionar nas cabeças da classe trabalhadora européia
na batalha pela derrubada do capitalismo. Isolada pelo fracasso da
revolução na Europa, a revolução russa
tomou um curso que a levou mais e mais para longe dos interesses do
proletariado europeu e internacional. A política do
“socialismo em um só país”, a princípio
somente uma defesa dos interesses do círculo burocrático
dominante, leva hoje o Estado russo a propagar uma política
nacionalista ombro a ombro com as potências imperialistas.
Qualquer que seja o curso dos eventos na Rússia, o
proletariado internacional deve se livrar de todas as ilusões
no que diz respeito a este Estado, e com a ajuda de uma análise
marxista clara, perceber que a atual casta burocrática e
militar dominante defende exclusivamente os seus próprios
interesses e que a revolução internacional não
pode contar com qualquer apoio desse governo.
O total
colapso militar, político e econômico da burguesia alemã
abre o caminho para a libertação do proletariado
alemão. Para prevenir o restabelecimento da burguesia alemã,
facilitado pelos antagonismos imperialistas, e para estabelecer o
poder proletário, é necessária a luta
revolucionária da classe trabalhadora de cada país
contra a sua própria burguesia. A classe trabalhadora foi
privada da sua liderança pelas políticas de duas
organizações internacionais dos trabalhadores, que
ativamente lutaram contra e sabotaram a revolução
proletária, que por si só poderia ter prevenido esta
guerra. A Segunda Internacional é uma ferramenta da burguesia.
Desde a morte de Lenin, a Terceira Internacional foi transformada em
uma agência da política externa da burocracia russa.
Ambas internacionais participaram ativamente na preparação
e na realização dessa guerra imperialista e, portanto,
dividem responsabilidade por ela. Atribuir responsabilidade, ou
responsabilidade parcial, por essa guerra à classe
trabalhadora alemã e internacional é outra forma de
continuar servindo à burguesia.
O
proletariado pode cumprir a sua tarefa histórica apenas sob a
liderança de um novo partido mundial revolucionário. A
criação desse partido é a tarefa mais pulsante
dos setores mais avançados da classe trabalhadora. Os quadros
revolucionários internacionais já se reuniram para
construir esse partido mundial na luta contra o capitalismo e os seus
agentes reformistas e stalinistas. Para levar a frente essa difícil
tarefa, não se deve buscar evitar a questão através
do slogan mais conciliatório da nova Internacional 2½.
Tal formação intermediária evitaria a
clarificação ideológica necessária e iria
ceifar a vontade revolucionária.
III.
Nunca Mais um 9 de Novembro de 1918!
No período
pré-revolucionário iminente, o que é necessário
é mobilizar as massas trabalhadoras na luta contra a burguesia
e preparar a construção de uma nova Internacional
revolucionária que irá forjar a unidade da classe
trabalhadora na ação revolucionária.
Todas as
teorias e ilusões sobre o “Estado popular” ou uma
“democracia popular” levaram a classe trabalhadora às
derrotas mais sangrentas no curso da luta de classes na sociedade
capitalista. Somente a luta irreconciliável contra o Estado
capitalista – até, inclusive, a sua destruição
e a construção de um Estado de conselhos de
trabalhadores e camponeses – pode evitar novas derrotas similares.
A burguesia e a pequeno-burguesia marginalizada trouxeram o fascismo
ao poder. O fascismo é criação do capitalismo.
Apenas a ação independente bem sucedida da classe
trabalhadora contra o capitalismo é capaz de erradicar o mal
do fascismo junto com as suas causas de origem. Nessa luta, a
pequeno-burguesia hesitante irá juntar forças com o
proletariado revolucionário na ofensiva, conforme a história
das grandes revoluções demonstra.
Para
emergir vitoriosa das batalhas de classe que estão por vir, a
classe trabalhadora alemã deve lutar pela realização
das seguintes demandas:
- Liberdade de organização, reunião e imprensa!
- Liberdade de ação coletiva e restauração imediata de todas as conquistas sociais pré-1933!
- Confisco da propriedade dos fascistas para o benefício das suas vítimas!
- Julgamento de todos os representantes do Estado fascista por tribunais eleitos livremente pelo povo!
- Dissolução das forças armadas alemães e a sua substituição por milícias de trabalhadores!
- Imediata eleição livre para conselhos de trabalhadores e camponeses ao longo de toda Alemanha e a convocação de um congresso geral desses conselhos!
- Preservação e extensão desses conselhos enquanto são usadas as instituições parlamentares da burguesia para a propaganda revolucionária!
- Expropriação dos bancos, da indústria pesada e das grandes propriedades!
- Controle da produção pelos sindicatos e conselhos de trabalhadores!
- Nenhum homem, nenhum centavo para pagar as dívidas de guerra e reparações da burguesia!
- A burguesia deve pagar!
- Pela revolução socialista em uma Alemanha unificada! Contra o desmembramento da Alemanha!
- Fraternização revolucionária com os proletários dos exércitos ocupantes!
- Por uma Alemanha de conselhos de trabalhadores em uma Europa de conselhos de trabalhadores!
- Pela revolução proletária mundial!
Os
Comunistas Internacionalistas de Buchenwald
(IV
Internacional) – 20 de abril de 1945