29.12.11

A Necessidade de Uma Organização Revolucionária

Introdução a 1917
A Necessidade de uma Organização Revolucionária

Originalmente publicado no verão de 1986, o presente artigo é uma introdução à primeira edição de 1917, revista internacional da então Tendência Bolchevique, predecessora da Tendência Bolchevique Internacional (TBI). Sua tradução para o português for realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011.

Toda a história da luta entre Bolcheviques e Mencheviques é marcada por essa pequena palavra ‘processo’. Lenin sempre formulou tarefas e propôs métodos correspondentes. Os Mencheviques concordavam com as mesmas ‘metas’ de forma genérica, mas deixavam sua realização para o futuro. Não há nada de novo sob o sol.”
Leon Trotsky, “Ao Camarada Sneevliet sobre o Congresso do IAG”, Escritos (1934-35).

Essa é a primeira edição de 1917, revista política da Tendência Bolchevique. Tomamos nosso nome do Ano Um da revolução proletária, o ano em que a classe trabalhadora russa esmagou a corrente do imperialismo mundial em seu elo mais fraco. A Revolução de Outubro não foi primariamente um evento russo em sua significância – ela foi o começo da luta internacional do proletariado pelo poder.

A brilhante promessa dos primeiros anos da revolução foi diminuída por seis décadas de traição e perfídia stalinista. Hoje o Kremlin já não é mais o quartel-general da revolução proletária, mas o domínio de uma casta burocrática e nacionalista que é uma barreira para o socialismo e que precisa ser derrubada através de uma revolução política dos trabalhadores. Ainda assim, as lições da Revolução Russa mantêm toda a sua significância para o futuro revolucionário da classe trabalhadora, e a defesa das conquistas sociais de 1917 continua a ser um medidor para diferenciar autênticos revolucionários dos variados social democratas do “Terceiro Campo”. Nós somos partidários de 1917. Nós baseamos no programa e estratégia na liderança daquela revolução: Lenin e Trotsky. Nós defendemos os documentos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista; a luta da Oposição de Esquerda contra a contrarrevolução política do stalinismo; os documentos fundacionais da Quarta Internacional e a tradição revolucionária do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) liderado por James P. Cannon dos anos 1930 aos anos 1950. A liderança do SWP abandonou a luta pela construção de uma vanguarda trotskista no início dos anos 1960 em troca de uma confiança no processo objetivo da História (personificado, em um primeiro momento, por Fidel Castro). A Tendência Revolucionária, predecessora da Liga Espartaquista (SL) nasceu na luta contra as consequências liquidacionista do castrismo de segunda-mão da maioria do SWP. Através dos anos 1960 e 1970 a herança programática do trotskismo foi representada pela tendência Espartaquista. Essa tradição nós reivindicamos como nossa.

Os fundadores da Tendência Bolchevique são, em sua maioria, veteranos da tendência Espartaquista internacional (iSt) que foram expulsos, junto com dúzias de outros quadros, no curso da transformação dessa organização desde um grupo de propaganda trotskista em uma obediente seita pseudo-revolucionária. Inicialmente organizados por fora da iSt enquanto uma “Tendência Externa”, nós decidimos que, de acordo com o nosso nível formal de similaridade programática, era apropriado solicitar o reingresso na tendência Espartaquista. Fizemos isso com a intenção declarada de cristalizar uma oposição à acelerada degeneração política da organização. A liderança da SL (que em certo momento fingiu estar interessada em nosso reingresso) respondeu ao nosso pedido com uma muralha de calúnias e injúrias destinadas bater a porta e fechá-la de uma vez por todas. Desde então tivemos sucesso em consolidar uma organização que representa a continuidade da tradição trotskista que a SL carregou à frente a partir do SWP há duas décadas.

A Liga Espartaquista não pode mais ser considerada, em nenhum sentido, uma organização revolucionária. Uma indicação prematura da ruptura política da SL com o seu passado trotskista foi a decisão da liderança de acabar com a implantação do grupo no proletariado industrial. Tem sido uma louca jornada desde então. De proclamações apocalípticas de um incipiente golpe fascista em julho de 1984 em São Francisco até caracterizações misóginas de oponentes feministas negras enquanto “fêmeas de dobermanns no cio” – a SL hoje é um dos grupos mais insanos (e nojentos) na esquerda. O centrismo deles é de um tipo particular – banditismo politico – no qual a posição política formal do grupo é submetida a flutuações selvagens de acordo com as percebidas exigências de manter “o partido” (particularmente seus aparatos organizativos e outras vantagens) ou por capricho do “líder-fundador”, Jim Robertson. Um dos artigos de fé exigidos de todos aqueles que se mudam para “Jimstown” é a alucinação paranoica de que virtualmente todas as outras tendências na esquerda estão envolvidas em uma gigantesca teia de intriga patrocinada pela polícia e voltada contra (quem mais?) a Liga Espartaquista. Esse esquema é chamado em Workers Vanguard [jornal da Liga Espartaquista] de “Campanha da Grande Mentira” e é usado para “justificar” expulsões na SL e provocar, acusando de policiais, os seus adversários na esquerda. 

Programa e Período 

O presente período na América do Norte é caracterizado por um giro generalizado à direita e pela diminuição da esquerda organizada. Uma grande variedade de organizações ditas “revolucionárias”, notadamente as antes formidáveis correntes maoístas, simplesmente fecharam suas portam e deixaram de existir. Aqueles que sobreviveram, particularmente entre os que se reivindicam trotskistas, giraram significativamente à direita em busca de um espaço no qual atuar. Isto talvez seja mais evidente no caso dos membros do “Secretariado Unificado” da Quarta Internacional (SU), liderado por Ernest Mandel. Quinze anos atrás, jovens mandelistas corriam por Paris e Londres balançando bandeiras da Frente Nacional para a Libertação do Vietnã e cantando os louvores de Ho Chi Min. Não mais. Nos últimos anos, o SU abraçou cada movimento de massas anticomunista, da “Revolução Islâmica” do Aiatolá Khomeini ao restauracionista e pró-capitalista Solidariedade de Lech Walesa. Os mandelistas coroaram sua opção pela socialdemocracia através da adoção formal, em seu Congresso Mundial de 1985, de “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, documento no qual esses ilegítimos pretendentes ao manto da Quarta Internacional propõem o “socialismo democrático” de Karl Kautsky e da Segunda [Internacional]. 

Os revolucionários devem entender o clima político e social no qual eles existem. Devem necessariamente adaptar a forma pela qual se apresentam ao nível existente de consciência de massa e à experiência de seus ouvintes. Mas uma organização revolucionária não pode adaptar o conteúdo de seu programa sem que deixe de ser revolucionária. O programa marxiano representa os interesses históricos do proletariado enquanto um fator consciente na política mundial – uma “classe para si”. Como tal, ele é necessariamente contraposto à existente falsa consciência da classe “em si” na sociedade burguesa.

 

O Problema do Revisionismo


1917 será tanto partidária quanto polêmica. Uma faca cega não tira sangue. Lutar pelo marxismo revolucionário em nosso tempo significa, acima de tudo, combater politicamente aqueles agrupamentos falsamente revolucionários que são a materialização organizativa da ideologia burguesa no seio da classe trabalhadora. A história do movimento marxista é uma de continuo enfrentamento com aquelas correntes que, sob a bandeira de “continuar”, “aprofundar” ou “estender” o marxismo, buscam corroer (ou revisar) os princípios fundamentais do programa revolucionário.

No fundo, o “revisionismo” reflete a pressão da sociedade burguesa sobre aqueles que buscam transformá-la. O denominador comum de todas essas correntes é a resignação “pragmática” à imutabilidade do mundo tal como ele é. A forma de acomodação política proposta varia de acordo com as circunstâncias, mas em geral as tendências revisionistas adicionam pouca coisa de nova – ao contrário, eles tendem a ressuscitar esquemas e impulsos há muito descreditados pela experiência do proletariado.

O revisionismo no movimento marxista raramente se mostra de forma aberta sob todas as suas cores. Ao menos inicialmente, ele se expressa através da terminologia marxista. Rosa Luxemburgo comentou sobre tal fenômeno em uma polêmica (“Reforma ou Revolução”) escrita há quase noventa anos atrás:

Esperar que uma oposição contra o socialismo científico, logo em seu início, se expresse de forma clara, completa, e até a última instância no objetivo de seu verdadeiro conteúdo; esperar que ela negue aberta e abruptamente a base teórica da social democracia [ou seja, o movimento marxista] – equivaleria a menosprezar o poder do socialismo cientifico. Hoje em dia, aquele que deseja fazer-se passar por um socialista e ao mesmo tempo declarar guerra à doutrina marxista (...) deve começar (...) procurando nos próprios ensinamentos de Marx os pontos de apoio para um ataque a este, enquanto apresenta este ataque como um desenvolvimento da doutrina marxista.”

Cuidadosa atenção às questões de programa e teoria e a vigorosa defesa das conquistas políticas do passado não é nem um exercício no sentido do escolasticismo talmúdico, nem uma forma de veneração a ancestrais, como é frequentemente imaginado pelos presunçosos e cínicos defensores do “não-sectarismo”. O que podem parecer ao novato ou ao diletante como divisões sem sentido com base em pequenas nuances de posição, frequentemente representam profundas diferenças em termos de apetite político com enormes implicâncias no futuro. A política é um campo em que uma diferença de um por cento irá muitas vezes se mostrar decisiva.

A “Questão Organizativa”

Desde a origem de nossa tendência temos insistido que a questão organizativa é uma questão política de primeira ordem para um agrupamento revolucionário. Uma tendência revolucionária não precisa estar sempre correta – mas ela precisa sempre ser corrigível. Se ela é ou não corrigível é em função do regime interno que prevalece. Isso não é essencialmente questão de adesão a uma fórmula, mas da realidade pulsante da vida interna da organização. James P. Cannon, o fundador do trotskismo norte-americano, certa vez observou que:

É perfeitamente possível para líderes escorregadios escreverem dez constituições garantindo liberdade de crítica dentro de um partido e então criarem uma atmosfera de terror moral na qual um camarada jovem ou inexperiente não desejará abrir sua boca com medo de ser feito de idiota, pisoteado, ou acusado de algum desvio político que ele na verdade não possui.”
O Partido dos Trabalhadores Socialistas na Segunda Guerra Mundial

Uma vida interna vibrante e democrática dentro de uma organização revolucionária não é só uma opção desejável, mas uma necessidade vital. Ela é simultaneamente o único mecanismo para a correção de erros da liderança e o único ambiente no qual quadros revolucionários podem ser criados. Grupos como a SL em fins dos anos 1970, nos quais a liderança é capaz de possuir um efetivo monopólio de expressão política interna, em nome da “eficiência” (ou seja, estabelecendo um curto-circuito do necessário gasto de tempo e do difícil processo de solucionar disputas políticas através de lutas internas e democráticas) preparam sua própria e inevitável degeneração política.

Os membros de uma organização leninista têm o direito de eleger para posições de liderança aqueles indivíduos em que possuem maior confiança política e de substituí-los caso seja necessário. Ao mesmo tempo, uma organização revolucionária só pode operar na base do estrito centralismo, com os órgãos dirigentes tendo total autoridade para determinar a linha política pública da organização como um todo e para dirigir o trabalho de todos os órgãos subordinados do partido, bem como membros individuais. O direito de dissidência interna ao partido (e particularmente o direito das minorias de lutar para substituir a direção), e a própria consciência política dos membros, representam as únicas garantias contra a degeneração da vanguarda antes da vitória da revolução proletária.

A Necessidade de uma Organização Revolucionária

A vanguarda revolucionária se distingue acima de tudo pelo fato de que ela é a portadora do conhecimento programático historicamente derivado necessário para o avanço da luta dos trabalhadores pelo poder. Isso não é algo que pode ser anunciado ou proclamado, é algo que precisa ser provado através das respostas da organização aos eventos da luta de classes. Os centristas zombam daqueles que checam cuidadosamente o histórico de uma organização ao avaliar suas credenciais revolucionárias. Para eles isso não passa de tarefa de bibliotecário. Mas o melhor teste para saber o que uma organização fará no futuro não é o que ela promete hoje, mas o que ela fez em momentos críticos do passado.

A importância de uma organização revolucionária dentro do movimento dos trabalhadores em períodos de refluxo é essencialmente servir de polo ideológico para o qual recrutar e treinar os quadros necessários para que lidere as inevitáveis batalhas por vir. Uma vanguarda revolucionária não pode ser improvisada do dia para a noite. Ela não irá emergir de forma semi-espontânea no “processo” da luta de classes. Ela precisa ser forjada de forma antecipada dentro do combate político entre o marxismo revolucionário e todo o leque de lideranças equivocadas da classe trabalhadora, de socialdemocratas a falsos trotskistas. É a esse combate que 1917 está dedicada.

O elemento decisivo em toda situação é a força, permanentemente organizada e pré-ordenada por um longo período, que pode avançar quando se julgar que a situação é favorável (e ela é favorável apenas na condição em que tal força exista e esteja repleta de ardor combativo); assim, a tarefa essencial é aquela de dedicar uma atenção sistemática e paciente à formação e desenvolvimento dessa força, tornando-a ainda mais homogênea, compacta, consciente de si mesma.”
Antonio Gramsci, “O Moderno Príncipe”. [Cadernos do Cárcere, Caderno 13 - nota 17]