Introdução
a 1917
A
Necessidade de uma Organização Revolucionária
Originalmente
publicado no verão de 1986, o presente artigo é uma
introdução à primeira edição de
1917, revista internacional da então Tendência
Bolchevique, predecessora da Tendência Bolchevique
Internacional (TBI). Sua tradução para o português
for realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de
2011.
“Toda a história da
luta entre Bolcheviques e Mencheviques é marcada por essa
pequena palavra ‘processo’. Lenin sempre formulou tarefas e
propôs métodos correspondentes. Os Mencheviques
concordavam com as mesmas ‘metas’ de forma genérica, mas
deixavam sua realização para o futuro. Não há
nada de novo sob o sol.”
Essa é a primeira
edição de 1917, revista política
da Tendência Bolchevique. Tomamos nosso nome do Ano Um da
revolução proletária, o ano em que a classe
trabalhadora russa esmagou a corrente do imperialismo mundial em seu
elo mais fraco. A Revolução de Outubro não foi
primariamente um evento russo em sua significância – ela foi
o começo da luta internacional do proletariado pelo poder.
A brilhante promessa dos
primeiros anos da revolução foi diminuída por
seis décadas de traição e perfídia
stalinista. Hoje o Kremlin já não é mais o
quartel-general da revolução proletária, mas o
domínio de uma casta burocrática e nacionalista que é
uma barreira para o socialismo e que precisa ser derrubada através
de uma revolução política dos trabalhadores.
Ainda assim, as lições da Revolução Russa
mantêm toda a sua significância para o futuro
revolucionário da classe trabalhadora, e a defesa das
conquistas sociais de 1917 continua a ser um medidor para diferenciar
autênticos revolucionários dos variados social
democratas do “Terceiro Campo”. Nós somos partidários
de 1917. Nós baseamos no programa e estratégia na
liderança daquela revolução: Lenin e Trotsky.
Nós defendemos os documentos dos quatro primeiros congressos
da Internacional Comunista; a luta da Oposição de
Esquerda contra a contrarrevolução política do
stalinismo; os documentos fundacionais da Quarta Internacional e a
tradição revolucionária do Partido dos
Trabalhadores Socialistas (SWP) liderado por James P. Cannon dos anos
1930 aos anos 1950. A liderança do SWP abandonou a luta pela
construção de uma vanguarda trotskista no início
dos anos 1960 em troca de uma confiança no processo objetivo
da História (personificado, em um primeiro momento, por Fidel
Castro). A Tendência Revolucionária, predecessora da
Liga Espartaquista (SL) nasceu na luta contra as consequências
liquidacionista do castrismo de segunda-mão da maioria do SWP.
Através dos anos 1960 e 1970 a herança programática
do trotskismo foi representada pela tendência Espartaquista.
Essa tradição nós reivindicamos como nossa.
Os fundadores da Tendência
Bolchevique são, em sua maioria, veteranos da tendência
Espartaquista internacional (iSt) que foram expulsos, junto com
dúzias de outros quadros, no curso da transformação
dessa organização desde um grupo de propaganda
trotskista em uma obediente seita pseudo-revolucionária.
Inicialmente organizados por fora da iSt enquanto uma “Tendência
Externa”, nós decidimos que, de acordo com o nosso nível
formal de similaridade programática, era apropriado solicitar
o reingresso na tendência Espartaquista. Fizemos isso com a
intenção declarada de cristalizar uma oposição
à acelerada degeneração política da
organização. A liderança da SL (que em certo
momento fingiu estar interessada em nosso reingresso) respondeu ao
nosso pedido com uma muralha de calúnias e injúrias
destinadas bater a porta e fechá-la de uma vez por todas.
Desde então tivemos sucesso em consolidar uma organização
que representa a continuidade da tradição trotskista
que a SL carregou à frente a partir do SWP há duas
décadas.
A Liga Espartaquista não
pode mais ser considerada, em nenhum sentido, uma organização
revolucionária. Uma indicação prematura da
ruptura política da SL com o seu passado trotskista foi a
decisão da liderança de acabar com a implantação
do grupo no proletariado industrial. Tem sido uma louca jornada desde
então. De proclamações apocalípticas de
um incipiente golpe fascista em julho de 1984 em São Francisco
até caracterizações misóginas de
oponentes feministas negras enquanto “fêmeas de dobermanns no
cio” – a SL hoje é um dos grupos mais insanos (e nojentos)
na esquerda. O centrismo deles é de um tipo particular –
banditismo politico – no qual a posição política
formal do grupo é submetida a flutuações
selvagens de acordo com as percebidas exigências de manter “o
partido” (particularmente seus aparatos organizativos e outras
vantagens) ou por capricho do “líder-fundador”, Jim
Robertson. Um dos artigos de fé exigidos de todos aqueles que
se mudam para “Jimstown” é a alucinação
paranoica de que virtualmente todas as outras tendências na
esquerda estão envolvidas em uma gigantesca teia de intriga
patrocinada pela polícia e voltada contra (quem mais?) a Liga
Espartaquista. Esse esquema é chamado em Workers Vanguard
[jornal da Liga Espartaquista] de “Campanha da Grande Mentira” e
é usado para “justificar” expulsões na SL e
provocar, acusando de policiais, os seus adversários na
esquerda.
Programa
e Período
O presente período na
América do Norte é caracterizado por um giro
generalizado à direita e pela diminuição da
esquerda organizada. Uma grande variedade de organizações
ditas “revolucionárias”, notadamente as antes formidáveis
correntes maoístas, simplesmente fecharam suas portam e
deixaram de existir. Aqueles que sobreviveram, particularmente entre
os que se reivindicam trotskistas, giraram significativamente à
direita em busca de um espaço no qual atuar. Isto talvez seja
mais evidente no caso dos membros do “Secretariado Unificado” da
Quarta Internacional (SU), liderado por Ernest Mandel. Quinze anos
atrás, jovens mandelistas corriam por Paris e Londres
balançando bandeiras da Frente Nacional para
a Libertação do Vietnã e cantando
os louvores de Ho Chi Min. Não mais. Nos últimos anos,
o SU abraçou cada movimento de massas anticomunista, da
“Revolução Islâmica” do Aiatolá
Khomeini ao restauracionista e pró-capitalista Solidariedade
de Lech Walesa. Os mandelistas coroaram sua opção pela
socialdemocracia através da adoção formal, em
seu Congresso Mundial de 1985, de “Democracia Socialista e Ditadura
do Proletariado”, documento no qual esses ilegítimos
pretendentes ao manto da Quarta Internacional propõem o
“socialismo democrático” de Karl Kautsky e da Segunda
[Internacional].
Os revolucionários
devem entender o clima político e social no qual eles existem.
Devem necessariamente adaptar a forma pela qual se apresentam ao
nível existente de consciência de massa e à
experiência de seus ouvintes. Mas uma organização
revolucionária não pode adaptar o conteúdo de
seu programa sem que deixe de ser revolucionária. O programa
marxiano representa os interesses históricos do proletariado
enquanto um fator consciente na política mundial – uma
“classe para si”. Como tal, ele é necessariamente
contraposto à existente falsa consciência da classe “em
si” na sociedade burguesa.
O Problema do Revisionismo
1917 será
tanto partidária quanto polêmica. Uma faca cega não
tira sangue. Lutar pelo marxismo revolucionário em nosso tempo
significa, acima de tudo, combater politicamente aqueles agrupamentos
falsamente revolucionários que são a materialização
organizativa da ideologia burguesa no seio da classe trabalhadora. A
história do movimento marxista é uma de continuo
enfrentamento com aquelas correntes que, sob a bandeira de
“continuar”, “aprofundar” ou “estender” o marxismo,
buscam corroer (ou revisar) os princípios fundamentais do
programa revolucionário.
No fundo, o “revisionismo”
reflete a pressão da sociedade burguesa sobre aqueles que
buscam transformá-la. O denominador comum de todas essas
correntes é a resignação “pragmática”
à imutabilidade do mundo tal como ele é. A forma de
acomodação política proposta varia de acordo com
as circunstâncias, mas em geral as tendências
revisionistas adicionam pouca coisa de nova – ao contrário,
eles tendem a ressuscitar esquemas e impulsos há muito
descreditados pela experiência do proletariado.
O revisionismo no movimento
marxista raramente se mostra de forma aberta sob todas as suas cores.
Ao menos inicialmente, ele se expressa através da terminologia
marxista. Rosa Luxemburgo comentou sobre tal fenômeno em uma
polêmica (“Reforma ou Revolução”) escrita há
quase noventa anos atrás:
“Esperar que uma oposição
contra o socialismo científico, logo em seu início, se
expresse de forma clara, completa, e até a última
instância no objetivo de seu verdadeiro conteúdo;
esperar que ela negue aberta e abruptamente a base teórica da
social democracia [ou seja, o movimento marxista] – equivaleria a
menosprezar o poder do socialismo cientifico. Hoje em dia, aquele que
deseja fazer-se passar por um socialista e ao mesmo tempo declarar
guerra à doutrina marxista (...) deve começar (...)
procurando nos próprios ensinamentos de Marx os pontos de
apoio para um ataque a este, enquanto apresenta este ataque como um
desenvolvimento da doutrina marxista.”
Cuidadosa atenção
às questões de programa e teoria e a vigorosa defesa
das conquistas políticas do passado não é nem um
exercício no sentido do escolasticismo talmúdico, nem
uma forma de veneração a ancestrais, como é
frequentemente imaginado pelos presunçosos e cínicos
defensores do “não-sectarismo”. O que podem parecer ao
novato ou ao diletante como divisões sem sentido com base em
pequenas nuances de posição, frequentemente representam
profundas diferenças em termos de apetite político com
enormes implicâncias no futuro. A política é um
campo em que uma diferença de um por cento irá muitas
vezes se mostrar decisiva.
A
“Questão Organizativa”
Desde a origem de nossa
tendência temos insistido que a questão organizativa é
uma questão política de primeira ordem para um
agrupamento revolucionário. Uma tendência revolucionária
não precisa estar sempre correta – mas ela precisa sempre
ser corrigível. Se ela é ou não corrigível
é em função do regime interno que prevalece.
Isso não é essencialmente questão de adesão
a uma fórmula, mas da realidade pulsante da vida interna da
organização. James P. Cannon, o fundador do trotskismo
norte-americano, certa vez observou que:
“É perfeitamente
possível para líderes escorregadios escreverem dez
constituições garantindo liberdade de crítica
dentro de um partido e então criarem uma atmosfera de terror
moral na qual um camarada jovem ou inexperiente não desejará
abrir sua boca com medo de ser feito de idiota, pisoteado, ou acusado
de algum desvio político que ele na verdade não
possui.”
O Partido dos
Trabalhadores Socialistas na Segunda Guerra Mundial
Uma vida interna vibrante e
democrática dentro de uma organização
revolucionária não é só uma opção
desejável, mas uma necessidade vital. Ela é
simultaneamente o único mecanismo para a correção
de erros da liderança e o único ambiente no qual
quadros revolucionários podem ser criados. Grupos como a SL em
fins dos anos 1970, nos quais a liderança é capaz de
possuir um efetivo monopólio de expressão política
interna, em nome da “eficiência” (ou seja, estabelecendo um
curto-circuito do necessário gasto de tempo e do difícil
processo de solucionar disputas políticas através de
lutas internas e democráticas) preparam sua própria e
inevitável degeneração política.
Os membros de uma
organização leninista têm o direito de eleger
para posições de liderança aqueles indivíduos
em que possuem maior confiança política e de
substituí-los caso seja necessário. Ao mesmo tempo, uma
organização revolucionária só pode operar
na base do estrito centralismo, com os órgãos
dirigentes tendo total autoridade para determinar a linha política
pública da organização como um todo e para
dirigir o trabalho de todos os órgãos subordinados do
partido, bem como membros individuais. O direito de dissidência
interna ao partido (e particularmente o direito das minorias de lutar
para substituir a direção), e a própria
consciência política dos membros, representam as únicas
garantias contra a degeneração da vanguarda antes da
vitória da revolução proletária.
A
Necessidade de uma Organização Revolucionária
A vanguarda revolucionária
se distingue acima de tudo pelo fato de que ela é a portadora
do conhecimento programático historicamente derivado
necessário para o avanço da luta dos trabalhadores pelo
poder. Isso não é algo que pode ser anunciado ou
proclamado, é algo que precisa ser provado através das
respostas da organização aos eventos da luta de
classes. Os centristas zombam daqueles que checam cuidadosamente o
histórico de uma organização ao avaliar suas
credenciais revolucionárias. Para eles isso não passa
de tarefa de bibliotecário. Mas o melhor teste para saber o
que uma organização fará no futuro não é
o que ela promete hoje, mas o que ela fez em momentos críticos
do passado.
A importância de uma
organização revolucionária dentro do movimento
dos trabalhadores em períodos de refluxo é
essencialmente servir de polo ideológico para o qual recrutar
e treinar os quadros necessários para que lidere as
inevitáveis batalhas por vir. Uma vanguarda revolucionária
não pode ser improvisada do dia para a noite. Ela não
irá emergir de forma semi-espontânea no “processo”
da luta de classes. Ela precisa ser forjada de forma antecipada
dentro do combate político entre o marxismo revolucionário
e todo o leque de lideranças equivocadas da classe
trabalhadora, de socialdemocratas a falsos trotskistas. É a
esse combate que 1917 está dedicada.
“O elemento decisivo em
toda situação é a força, permanentemente
organizada e pré-ordenada por um longo período, que
pode avançar quando se julgar que a situação é
favorável (e ela é favorável apenas na condição
em que tal força exista e esteja repleta de ardor combativo);
assim, a tarefa essencial é aquela de dedicar uma atenção
sistemática e paciente à formação e
desenvolvimento dessa força, tornando-a ainda mais homogênea,
compacta, consciente de si mesma.”
Antonio Gramsci, “O
Moderno Príncipe”. [Cadernos do Cárcere, Caderno 13 - nota 17]