Feminismo e Histeria Moral
[O presente artigo foi escrito
pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional e originalmente
publicado em seu periódico 1917 n. 02,
no inverno de 1986. Sua tradução para o português foi realizada pelo
Reagrupamento Revolucionário em abril de 2014. Recomendamos a leitura de nosso
artigo Sobre Feminismo e “Feminismo”, para uma crítica ao uso do termo "feminismo" de forma indistinta para caracterizar certas tendências feministas.]
A histeria em torno da AIDS não pode ser dissociada da ofensiva
ideológica mais geral da direita. Pregando no mercado o evangelho da ganância
sem regulamentações, a direita Reaganista almeja, ao mesmo tempo, restabelecer
à força padrões Vitorianos de moralidade sexual para todos. Em um ensaio
entitulado Thinking Sex (“Pensando o
Sexo”, incluído no livro Pleasure and
Danger - Exploring Femele Sexuality, 1984) a antropóloga Gayle Rubin
localiza a origem da atual campanha anti-sexo no esforço realizado em 1977 pela
cantora Anita Bryant para derrubar uma portaria acerca de direitos gays em
Miami, e a compara a histerias morais anteriores, como aquele acerca da “escravidão branca” na década de 1880, as
campanhas anti-homossexuais dos anos 1950 e a histeria em torno da pornografia
infantil de fins da década de 1970. Ela escreve:
“Conforme a sexualidade nas sociedades Ocidentais é tão mistificada, as
guerras em torno dela são comumente travadas sob ângulos oblíquos, direcionada
a falsos alvos, conduzidas com paixões descoladas e são altamente,
intensamente, simbólicas. Atividades sexuais frequentemente funcionam como
signos para apreensões pessoais e sociais com as quais elas não possuem
conexões intrínsecas. Durante uma histeria moral, tais medos se ligam a alguma
desafortunada atividade sexual ou população. A mídia se torna flamejante de
indignação, o público se comporta como uma turba raivosa, a polícia é convocada
e o Estado formula novas leis e regulamentos. Quando o furor passa, algum
inocente grupo erótico é dizimado e o Estado expande seu poder para novas áreas
do comportamento erótico.”
Sendo ela própria uma feminista, Rubin ataca a aliança entre a direita e
feministas anti-sexo como o grupo Women
Against Pornography (“Mulheres Contra a Pornografia”). Ela observa que o
movimento feminista se polarizou em duas correntes: “Uma tendência criticou as
restrições ao comportamento sexual das mulheres e denunciou os altos custos
impostos à elas por serem sexualmente ativas [...]. A segunda tendência
considerou a liberalização sexual como sendo uma mera extensão dos privilégios
masculinos. Essa tradição ressoa o discurso conservador anti-sexo.”. No seu
extremo, esse grupo expõe uma paródia grotesca de uma sexualidade centrada na
família e repressiva, com sua defesa do lesbianismo monogâmico, enquanto
mal-diz praticamente todas as outras atividades sexuais como sendo mantidas
através da dominação masculina. “Até mesmo a fantasia sexual durante a
masturbação é denunciada como como um resquício falocêntrico.” Rubin vai além e
diz que:
“a retórica anti-pornô é um
gigante exercício de busca por bodes expiatórios. Ela critica atos
não-rotineiros de amor, ao invés de criticar atos rotineiros de opressão,
exploração e violência. Essa sexologia demoníaca dirige a raiva legítima contra
a falta de segurança pessoal das mulheres contra indivíduos, práticas e
comunidades inocentes. A propaganda anti-pornografia frequentemente sugere que
o machismo se origina dentro da industria comercial do sexo e então infecta o
resto da sociedade. Isso é sociologicamente estúpido. A indústria do sexo [...]
reflete o machismo que existe na sociedade como um todo [...]. Uma boa parte da
atual literatura feminista atribui a opressão das mulheres à representações
gráficas do sexo, à prostituição, educação sexual, sadomasoquismo,
homossexualismo masculino, transexualismo. O que aconteceu com a família, a
religião, a educação, práticas de criação das crianças, a mídia, o Estado,
psiquiatria, discriminação empregatícia e desigualdade salarial?”
Uma boa pergunta. A resposta é que tais questões estão submersas em um
movimento que situa a divisão social básica entre os sexos. Enquanto marxistas,
nós rejeitamos firmemente esse axioma feminista e defendemos que a raiz da
opressão reside na divisão da sociedade em classes antagônicas, isto é, nas
necessidades de uma minoria de capitalistas que se apropriaram da capacidade
produtiva da sociedade para manter seu poder. Aquelas falsas esquerdistas que
tentam cobrir esse vão com um hífen (designando a si próprias de “feministas
socialistas”) capitulam ao setorialismo do qual o feminismo é apenas uma entre
outras possíveis variantes. Ao fazerem isso, elas logo se vêem apoiando
“criticamente” tais iniciativas fundamentalmente reacionárias como o chamado ao
Estado por mais policiamento para garantir a segurança das ruas (a confiança
política das mobilizações do Take Back
the Night [“Retomemos a noite”, uma ONG e evento internacional pelo fim da
violência sexual]) ou pelo fechamento de sex
shops.
A opressão sexual nas sociedades capitalistas reside nos pilares gêmeos
da família e do Estado. O papel fundamental da família é o de produzir e
socializar a geração seguinte de trabalhadores assalariados para o capital. A
família naturalmente constitui um baluarte para a ordem social hierarquizada da
qual ela é a unidade básica. A repressão à homossexualidade e à outras formas
de sexualidades “desviantes” servem para canalizar a energia libidinosa para a
família nuclear monogâmica heterossexual socialmente aprovada. Nada de
fundamental nessa equação irá mudar imediatamente após a total reorganização da
sociedade que esmagará os fundamentos materiais da opressão às mulheres, e
assumirá a responsabilidade social pela criação das crianças e pelo trabalho
doméstico. Isso só pode ser alcançado através de uma revolução social liderada
pela classe trabalhadora, unindo atrás de si os oprimidos e explorados dessa
sociedade.