As mulheres e a Revolução Permanente
[Originalmente publicado em Workers Vanguard n.17, de março de 1973, pela então revolucionária Liga Espartaquista. Tradução para o português realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em espanhol publicada em Spartacist Español n.16.]
Para os marxistas a emancipação da mulher em relação à opressão especial que sofre é um indicador preciso do grau em que uma sociedade foi capaz de se livrar da opressão social em geral. Esta interrelação foi formulada pela primeira vez pelo socialista utópico Fourier:
Para os marxistas a emancipação da mulher em relação à opressão especial que sofre é um indicador preciso do grau em que uma sociedade foi capaz de se livrar da opressão social em geral. Esta interrelação foi formulada pela primeira vez pelo socialista utópico Fourier:
"A mudança de uma época histórica sempre pode ser determinada pelo progresso das mulheres rumo à liberdade, porque nas relações da mulher com o homem, do fraco com o forte, é mais evidente a vitória da natureza humana sobre a brutalidade. O grau de emancipação das mulheres é a medida natural da emancipação geral." — Theorie des quatre mouvements, 1808.
Fourier
foi parafraseado por Marx em A Sagrada Família (1845):
"A relação do homem com a mulher é a relação mais natural de um ser humano com o outro. Indica, portanto, em que medida o comportamento natural do homem se tornou humano, e em que medida sua essência humana se converteu em um essência natural pra ele, até que ponto sua natureza humana se converteu em natureza para ele."
Marx
repetiu o mesmo ponto 23 anos depois, de uma forma mais direta e
sucinta, em uma carta a Kugelmann: “...o progresso social pode ser
medido com exatidão pela posição social do belo sexo (as feias
incluídas).”
Origens
da família monogâmica
Uma
das ironias da história é que a origem da opressão especial que a
mulher sofre tem suas raízes em um dos primeiros avanços sociais: o
desenvolvimento de tecnologia humana para além da luta diária pela
subsistência mínima típica das sociedades caçadoras-coletoras.
Com a introdução da criação de gado, forja de metais, tecelagem
e, por último, a agricultura, a força de trabalho humana se tornou
capaz de produzir um sobre-produto social substancial. Sob o impacto
desses avanços tecnológicos, a instituição sob a qual o trabalho
humano se reproduz, a família, passou por uma profunda
transformação. Conforme Marx e Engels apontaram na Ideologia
Alemã, a propagação da espécie engendrou a primeira divisão
de trabalho, entre homens e mulheres. Por conta das funções
procriativas das mulheres, a tarefa de ter e criar filhos, bem como
as tarefas domésticas em geral caíram sobre elas. O âmbito
doméstico era a esfera geral das atividades da mulher. Entretanto, o
desenvolvimento das tecnologias, a domesticação dos animais
(incluindo outros humanos, geralmente prisioneiros de guerra ou
escravos) e da terra, bem como o desenvolvimento de ferramentas, teve
lugar na esfera geral das atividades do homem, e foi ele que se
apropriou da concomitante expansão da riqueza social. Assim, o
advento da propriedade privada e a necessidade de transferir sua
propriedade através da herança fez surgir as leis patriarcais da
herança e da descendência. A família monogâmica se desenvolveu
para garantir a paternidade das crianças, enquanto a reclusão da
esposa se tornou uma incumbência para garantir sua fidelidade.
Essa reclusão significava uma exclusão da vida pública e da
reprodução social.
"A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros." — ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1884.
Antes
do surgimento da propriedade privada e da família monogâmica, as
armas, assim como as ferramentas de trabalho e a propriedade, eram
propriedade comum. Todavia, com o desenvolvimento da propriedade
privada e dos meios de produção e procriação, e a polarização
da sociedade em classes econômicas, as armas foram monopolizadas por
corpos de homens separados do resto da sociedade. Estes corpos
armados de homens constituíram a essência do Estado.
Apesar de parecer estar acima das classe, o Estado na realidade é o
instrumento através do qual a classe economicamente dominante de
cada época mantém sua hegemonia. O Estado antigo era o Estado dos
escravistas, para manter submetidos os escravos; o Estado feudal era
o órgão da nobreza para submeter camponeses, servos e peões; e o
Estado “democrático” moderno é o instrumento da classe
capitalista para manter seu domínio e capacidade de explorar os
trabalhadores.
Em
cada época, a família, tal qual o Estado, foi principalmente uma
instituição para perpetuar a forma de propriedade dominante e a
classe econômica dominante. Para o escravo, o servo e o escravo
assalariado – isto é, para aquelas classes sociais desprovidas de
propriedade a herdar ou defender – a família e a polícia são
principalmente instituições de subjugação.
Limitações
do programa burguês
Com
a chegada do capitalismo industrial, a família entrou em um estado
de dissolução relativa. Para baixar os salários, o capitalismo
tratou de reduzir o custo de produção e reprodução da força de
trabalho, integrando a família inteira no processo produtivo. Isso
significou o desmantelamento da estrutura das guildas artesanais, no
começo através da distribuição do “trabalho por peça” a
famílias individuais, e logo depois através de sua concentração
em zonas industriais e moradias de propriedade da empresa. Em países
de desenvolvimento industrial tardio, como a Rússia czarista, as
guildas e o desenvolvimento da indústria de trabalho em domicílio
foram omitidos, e os servos atraídos diretamente a grandes e
desoladas cidades patronais.
O
retorno da mulher à produção social é a precondição para sua
emancipação social, mas sob o capitalismo isso significou uma maior
escravização e degradação da mulher, ao ser forçada a agregar a
escravidão assalariada a sua escravidão doméstica. Incapazes e
relutantes em oferecer substitutos sociais ao papel econômico da
família, contudo, os capitalistas encorajaram as mulheres a
retornarem para casa e para a cozinha, com propaganda conscientemente
elaborada a favor da família e da religião. Dessa maneira, o
capitalismo expandiu as forças produtivas e criou as bases
tecnológicas para a socialização do trabalho doméstico e a
substituição da família como unidade econômica, mas foi e segue
sendo incapaz de alcançar essa substituição, da mesma maneira que
criou as bases para a socialização internacional dos meios de
produção, mas ainda não pôde eliminar as fronteiras nacionais.
Para
a sua sobrevivência, o capitalismo depende das tradicionais e
arcaicas instituições sociais da dominação de classe: a
propriedade privada, a família monogâmica e o Estado nacional.
Conforme as forças produtivas geradas pelo capitalismo crescem,
pressionam contra os limites impostos pelas instituições sociais
sobre as quais se baseia o sistema, e a classe capitalista se torna
cada vez mais virulenta em seu afã por apoiar e reforçar
instituições que se tornam cada vez mais reacionárias. A tendência
das mulheres a saírem das fábricas e voltarem aos lares, respaldada
pelos capitalistas, alcançou seu ponto culminante na campanha
Nazista para a escravização da mulher, sob o slogan Kinder,
Kirche, Küche – “crianças, igreja, cozinha”.
As
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, que limparam as
instituições feudais do caminho do desenvolvimento capitalista,
substituíram as relações sociais baseadas sobre obrigações e
privilégios por aquelas que se baseiam na igualdade contratual e,
desse modo, tiveram um profundo efeito sobre a família. A igualdade
de direitos entre os sexos foi defendida pelos partidários
ideológicos mais radicais da revolução burguesa, especialmente com
respeito à posse e à transmissão hereditária da propriedade. Mas,
ainda que no marco da legalidade formal, a burguesia se assustou com
as consequências da sua própria revolução e imediatamente buscou
no passado medieval instituições arcaicas com as quais estabilizar
seu domínio. Assim, a Revolução Francesa foi seguida por uma
contrarrevolução política, um Termidor no qual os agentes da
revolução burguesa, os pobres do campo e os sansculottes urbanos,
foram deserdados. Em termos da família e da opressão especial à
mulher, o Termidor forneceu o Código Napoleônico, o qual converteu
a mulher em propriedade do seu marido, requerendo da mulher a
obtenção de permissão do mesmo para, por exemplo, conseguir um
passaporte, elaborar um testamento ou firmar um contrato.
De
forma similar, a igualdade das nações proclamada pela revolução
burguesa foi subordinada ao impulso dos países industrialmente
avançados para submeter as nações menos desenvolvidas na luta por
mercados e matérias primas. A interrelação entre a subordinação
da igualdade dos sexos e da igualdade das nações é demonstrada
graficamente pelo imperialismo francês. Quando Napoleão III
considerou que um índice maior de nascimentos era essencial para
fornecer trabalhadores e soldados à expansão do Império Francês,
recorreu à Roma e conseguiu que o Papa redefinisse o começo da vida
– substituindo o ponto de vista católico tradicional, segundo o
qual a vida começa quando o feto pode sobreviver fora da mãe, pela
posição atual, que sustenta que a vida se inicia imediatamente
depois da concepção. Isso converteu o aborto de pecado venial em
pecado mortal, e sob esta base Napoleão III redigiu a restritiva lei
do aborto que existe na França atualmente [tal lei foi revogada em
1975 sob pressão da militância feminista, sendo o aborto atualmente
legalizado no país].
As
mulheres sob o capitalismo decadente
Assim,
a burguesia nunca foi consistentemente democrática, mesmo quando
estavam na ordem do dia as tarefas democráticas necessárias à
consolidação de sua dominação. Na época do imperialismo, os
países imperialistas tem um interesse ainda maior em suprimir as
aspirações democráticas e nacionais das massas das colônias e
semicolônias. Tivessem os poderes imperialistas na China apoiado a
Rebelião de Taiping (na qual brigadas de mulheres armadas cumpriram
um importante papel), uma nação protestante moderna poderia ter
surgido ali no século passado. Ao invés, eles apoiaram os Manchus,
dos quais já dependiam então para garantir estabilidade. A estrado
rumo à submissão imperialista se pavimenta pelo reforço aos
aspectos mais reacionários e repressivos da sociedade semifeudal,
combinado com a penetração nesta sociedade do que há de mais
avançado em termos de técnicas capitalistas.
A
inabilidade das “burguesias nacionais” desses países coloniais
em desmantelar o passado feudal e levar adiante uma revolução
democrático-burguesa foi demonstrada de forma conclusiva no decorrer
do último século. A burguesia nacional, geralmente recrutada
diretamente da velha nobreza e que depende das relíquias do passado
feudal para sobreviver (por exemplo, os latifúndios na América
Latina), se desenvolveram como agentes corretores do imperialismo. As
classes burguesas nativa no mundo colonial foram incapazes de se
separem do entrelaçamento com a dominação imperialista por medo de
colocaram em curso forças que as varreriam para fora do poder também
– principalmente a luta anti capitalista dos trabalhadores, em
aliança com o campesinato.
Analisando
as tarefas de uma revolução na Rússia Czarista e as formas de
alcançá-la, Trotsky formulou a teoria da revolução permanente.
Ele concluiu que não só seria necessária uma liderança proletária
para que se concretizassem as metas democrático-burguesas básicas
da revolução – uma vez que a burguesia era incapaz de tomar um
caminho revolucionário contra a autocracia – como também que o
proletariado deveria estabelecer suas próprias metas socialistas, de
forma imediata, caso se quisesse que a revolução fosse bem
sucedida. Para que se desenraizassem a autocracia feudal e a
dominação colonial, a classe trabalhadora teria que desenraizar a
ordem burguesa que crescera com ela, e agora a escorava.
A
questão da emancipação feminina no Terceiro Mundo continua a
demonstrar a verdade das conclusões de Trotsky e das lições da
Revolução Russa que ele antecipou. A igualdade de direitos para as
mulheres é um direito democrático básico, declarado por todas as
democracias e aceito como um objetivo de todos os movimentos de
“libertação nacional”. No entanto, a opressão especial das
mulheres se assenta sobre o próprio sistema de propriedade. Assim
como a luta anticolonial que limita as suas metas ao estabelecimento
de um Estado independente não é capaz de fornecer independência
verdadeira ao domínio imperialista, também a “revolução” que
é interrompida antes de derrubar o capitalismo se mostrou incapaz de
erradicar a opressão das mulheres.
A
luta pelo controle de Bangladesh fornece exemplos tão chocantes de
comportamento imperialista desumano, que o controle completo da luta
de “libertação nacional” contra o Paquistão pelos igualmente
reacionários rivais imperialistas indianos é esquecido. No entanto,
este fato impediu completamente a realização de todas as tarefas
democráticas por esse movimento. Entre as vítimas dessa luta
estavam 200.000 mulheres bengalis, que foram sistematicamente
estupradas de forma coletiva por gangues do Exército paquistanês do
oeste. Depois, as tropas do Marechal [Ayub] Khan rasparam as cabeças
dessas mulheres, uma marca de desgraça na sociedade Bengali. As
mulheres foram então libertadas, apenas para que fossem em seguida
rejeitadas e massacradas por seus maridos, irmãos e pais, enquanto o
Xeique [Ohmar Abdel] Rahman, fiel senescal da ex-feminista Indira
Gandhi, chegava ao poder. O Estado que surgiu por trás das baionetas
do exército indiano se mostrou tão libertador para as mulheres de
Bangladesh quanto o regime que perpetrou os bestiais estupros
coletivos. A perseguição vingativa aos Biharis [habitantes do
nordeste da Índia] sob o novo Estado está longe de servir de
consolo.
Dois
exemplos: a independência argelina...
Quando
a “libertação nacional” não se limita a simplesmente
substituir um suserano do imperialismo por outro, como em Bangladesh,
mas resulta em um grau de independência política real dentro do
contexto de dominação econômica – como na Argélia – a
ausência de melhorias para as mulheres reflete a contínua
incapacidade de realizar tarefas democráticas fundamentais da
revolução para as massas. O Programa de Tripoli, manifesto básico
da revolução argelina, prometeu vagamente igualdade formal, mas até
mesmo a lei do novo regime impõe desigualdades sexuais para as
mulheres, muitas das quais lutaram na FLN tanto como auxiliares
quanto como comandantes. Por exemplo, a pena máxima para o adultério
cometido por homens é de um ano, para as mulheres, dois. E a
realidade é muito pior do que a letra da lei expressa – enquanto o
casamento forçado agora é ilegal, todo ano até mesmo o governo é
forçado a admitir que muitos suicídios acontecem para evitar
casamentos forçados. Isto pode ser atribuído à dificuldade em
superar as tradições, no entanto, a atitude do regime da Argélia é
hostil para a superação da tradição. Boumedienne, presidente do
Conselho “revolucionário” da Argélia, disse:
“Nós dizemos ‘não’ a este tipo [ocidental] de evolução, pois a nossa sociedade é uma sociedade socialista e islâmica. Existe um problema aqui. Ele envolve o respeito à moralidade .... Porque vimos entre vários povos que foram recentemente libertados, aquela mulher que, uma vez livre, apressa-se a pensar em coisas que não é preciso citar aqui .... A evolução da mulher argelina e o gozo de seus direitos deve estar no âmbito da moralidade de nossa sociedade.”-- 8 de março de 1966
E
este discurso foi feito no Dia Internacional da Mulher! O discurso
fez com que várias mulheres saíssem do local. Na Argélia
“socialista”, onde todos os alunos recebem educação religiosa,
as mulheres têm sido mantidas fora da política, geralmente fora do
ensino superior e também sob o véu.
A
sociedade argelina não tem passado sem algumas reformas
democráticas, até mesmo reformas que atingem a família. Mas cada
reforma é elaboradamente justificada somente após tortuoso debate
religioso e tediosa reinterpretação do Corão.
O
imperialismo moderno não se esqueceu de seu Rudyard Kipling [famoso
escritor britânico, conhecido por sua apologia ao imperialismo
inglês], não se esqueceu de como envolver-se no manto de uma
“missão civilizadora”, especialmente em relação ao “sexo
frágil” – afinal ele estupra tanto as mulheres quanto os
recursos naturais das nações subjugadas. Imperialistas franceses,
cujo Código Napoleônico até 1966 não permitia que uma mulher
abrisse uma conta bancária ou assumisse um emprego sem a permissão
de seu marido, desfilou na Argélia como os defensores e libertadores
das mulheres muçulmanas. Talvez a expressão mais ridícula dessa
hipocrisia tenha sida assim chamada “Batalha dos Véus”. Depois
de 13 de maio de 1958, quando os colonos franceses saquearam a sede
do governador-geral, derrubando a Quarta República, uma mulher
colona organizou o Movimento de Solidariedade Feminina, que fez
desfilarem mulheres muçulmanas sem o véu, para que dessem discursos
elogiosos sobre como era bom ser liberada pela sociedade da
“liberdade, igualdade e fraternidade” – o casamento completo do
feminismo e do imperialismo! Em reação, o véu se tornou um símbolo
da resistência ao imperialismo francês, tal como a família
muçulmana, os costumes tradicionais etc. Assim, não só não se
aboliram costumes seculares de escravidão doméstica e opressão,
mas os símbolos desses costumes foram adoradas pela “Revolução”!
Assim Boumedienne diz “não” não apenas para a hipocrisia
imperialista francesa, mas também para as conquistas fundamentais da
Revolução Francesa.
A
expressão mais articulada do nacionalismo terceiro-mundista que,
como os Narodink russos, reduz o “socialismo” e a “revolução”
a um resgate do feudalismo, pode ser encontrado naquele queridinho
dos revolucionários dos cafés, Frantz Fanon, o ideólogo oficial da
FLN argelina. Enquanto seu livro O
ano cinco da revolução argelina é
um testemunho da coragem e força da mulher revolucionária argelina
– mostrando como o envolvimento na FLN revolucionou sua posição
social – Fanon descobre sua força não na experiência libertadora
da igualdade imposta pela vida de combatente, mas na tradição
muçulmana patriarcal:
"O que é verdade é que, em condições normais, uma interação deve existir entre a família e a sociedade em geral. O lar é a base da verdade da sociedade, mas a sociedade autentica e legitima a família. A estrutura colonial é a própria negação recíproca dessa justificação. A mulher argelina, ao impor tal restrição a si mesma, ao escolher uma forma de existência de âmbito limitado, estava aprofundando a sua consciência de luta e de preparação para o combate."
Fanon
está bastante certo ao afirmar que, depois de participar da luta de
libertação nacional, a mulher argelina “não poderia colocar-se
de volta em seu antigo estado de espírito e reviver seu
comportamento do passado”. Mas para Fanon, como para os Narodinik,
o atraso cultural e social das massas é em si uma fonte de sua
capacidade revolucionária. Os Narodinik, os supremos
pequeno-burgueses democratas radicais, negaram o caráter burguês da
revolução democrática, ou seja, a revolução agrária, a
independência nacional e os direitos democráticos, que constituíram
os parâmetros de seu programa. Para eles, para Fanon e para o regime
oficial argelino e seus diversos apologistas
Stalinistas-Maoístas-Pablistas, esse regime é “socialista”,
apesar de sua incapacidade de realizar até mesmo as tarefas
democráticas básicas da revolução burguesa. O que emerge é um
nacionalismo terceiro-mundista, profundamente antidemocrático,
feudal e, neste caso, fundamentalista muçulmano.
…e
a Revolução Russa
Se
a experiência argelina é a confirmação negativa da revolução
permanente, a Revolução Bolchevique de 1917 foi tanto uma
confirmação positiva quanto negativa. A Revolução Russa surgiu a
partir da experiência cataclísmica de uma guerra mundial, em um
país que, como os países coloniais, combinava o que havia de mais
recente em tecnologia – indústrias que estavam inteiramente
fundidas com o capital financeiro e, como tal, eram controladas em em
última análise pelas Bolsas da Europa Ocidental – com as
instituições medievais mais atrasadas. Ao mesmo tempo, a Rússia
era a “prisão das nações”, ela própria uma potência
imperialista com apetites expansionistas na Ásia Menor e nos Bálcãs.
Dado o desenvolvimento burguês retardatário da Rússia, ela pulou
aquela fase que nutre uma forte pequena-burguesia urbana com fortes
instituições e ilusões democráticas. Quando a mulher radicalizada
da intelligentsia entrou para a política, não o fez como
uma feminista ou sufragista, mas como terrorista. De acordo com os
relatórios do ministro czarista da Justiça, Conde Pahlen, das 620
pessoas convocadas perante os tribunais por atividades
revolucionárias durante a década de 1870, 158 eram mulheres. O
Comitê Central Executivo do Narodnaya Volya (“Vontade do Povo”),
de 29 membros, em 1879, tinha dez mulheres. Um dos membros desse
grupo, Sofya Perovskaya, dirigiu o assassinato de Alexandre II.
A
atividade terrorista das mulheres de classe média radicalizadas foi
o prelúdio para as combativas batalhas de classe das mulheres
trabalhadoras da Rússia. Concentradas principalmente nas indústrias
têxteis, elas estiveram na vanguarda das lutas grevistas de finais
de 1890. Após a virada do século, feministas burguesas organizaram
“Clubes Políticos de Mulheres” em São Petersburgo. No inverno
de 1907-1908, os social-democratas russos organizaram a “Sociedade
de Ajuda Mútua entre as Mulheres Trabalhadoras” e emitiram a
publicação A Mulher Trabalhadora. Quando as feministas
burguesas organizaram o primeiro Congresso Pan-Russo de Mulheres, em
1908, as “mulheres sociais-democratas foram representadas pelo seu
próprio grupo de classe, com 45 mulheres. Depois de passar as suas
próprias resoluções independentes em todas as questões, as
mulheres trabalhadoras finalmente saíram deste congresso de ‘damas’”
(A. Kollontai, Women Workers Struggle for Their Rights,
1918).
Uma
das diferenças entre Bolcheviques e Mencheviques foi sobre a
possibilidade de organizar um grupo de mulheres proletárias
independente ou participar nos grupos feministas burgueses. Após a
separação final entre os Bolcheviques e Mencheviques, em 1912, os
Bolcheviques se distinguiram ao continuar a lutar para atrair
mulheres proletárias para o movimento revolucionário. Os
Bolcheviques retomaram a publicação de A Mulher Trabalhadora,
em 1914, para o Dia Internacional da Mulher. Este feriado, que tinha
se originado em 1908 no Lower East Side de Manhattan (Rutgers
Square), por mulheres no ramo do comércio de agulhas, foi adotado
pela Segunda Internacional, sob a liderança de Clara Zetkin, em
1911. Ele foi celebrado pela primeira vez na Rússia, por iniciativa
das trabalhadoras têxteis de São Petersburgo em 1913 e comemorado
de novo em 1914, complementado com reuniões de massa, procissões e
da primeira aparição da bandeira vermelha em São Petersburgo. A
próxima celebração foi em 1917 e marcou a abertura da Revolução
Russa.
Os
Stalinistas, que tentam encaixar a Revolução Russa em seu esquema
etapista, afirmam que a Revolução de Fevereiro foi a etapa
democrático-burguesa da revolução. Apesar de a Revolução de
Fevereiro ter sido burguesa na medida em que colocou a burguesia no
poder, havia muito pouca democracia nisso, especialmente em relação
à emancipação das mulheres. E expulsão da igreja e dos tribunais
eclesiásticos para fora dos assuntos privados de casamento e
divórcio só foi conseguido depois, pela ditadura do proletariado.
Da mesma forma, foi somente após a Revolução Bolchevique que um
esforço real foi feito para aliviar a escravidão doméstica de
mulheres através da criação de enfermarias, creches, assistência
à maternidade, refeitórios públicos e lavanderias.
A
Revolução Bolchevique estabeleceu outro princípio básico da
revolução permanente, a necessidade de liderança proletária sobre
o movimento camponês. Enquanto a revolução agrária foi
espontânea, a luta para convocar as mulheres camponesas para a vida
pública e política completa não foi. A mobilização política das
mulheres camponesas exigiu os esforços corajosos e persistentes das
mulheres do partido bolchevique, muitas das quais foram
recrutadas nas fábricas têxteis de São Petersburgo, que estavam na
vanguarda da luta de classes russa por três décadas antes da
revolução. Organizadas em seções especiais do Partido Comunista
dedicadas a ganhar as massas de mulheres oprimidas para a revolução,
quadros partidários, muitas vezes disfarçadas
em paranyas e eluchvons (a roupa
velada usada pelas mulheres em territórios muçulmanos da União
Soviética) iam levar a mensagem da revolução para as áreas mais
atrasadas da Rússia. A fim de atingir as mulheres em tribos nômades,
seções femininas do PC organizaram as Yurtas Vermelhas, grandes
tendas que distribuíam propaganda médica e também política. Seus
esforços culminaram na Primeira Conferência Pan-Russa das Mulheres
Proletárias e Camponesas, em novembro de 1918, com a participação
de 1.700 delegadas. Uma das participantes descreveu a conferência
como segue:
"Em 1918, quando a guerra civil estava no auge, quando ainda tínhamos que lutar contra a fome, o frio e a devastação sem precedentes, quando ainda era necessário derrotar o inimigo em inúmeras frentes, nesse momento a conferência das mulheres proletárias e camponesas foi convocada. Centenas de mulheres labutadoras, das fábricas e aldeias mais remotas, tinham chegado a Moscou com suas denúncias, reclamações e dúvidas, com todos os seus cuidados, grandes e pequenos."-- F.W. Halle, Mulheres na Rússia Soviética (1933).
O
Termidor reverte os ganhos das mulheres
Mas
a União Soviética, um país economicamente atrasado, devastado pela
intervenção imperialista e pela guerra civil, sitiado e cercado por
potências capitalistas hostis, era incapaz de fornecer a base
econômica para a construção do socialismo; só era possível
“socializar a escassez”. Lenin e Trotsky perceberam que, assim
como a revolução democrática deve evoluir para a revolução
socialista se quer resolver as tarefas democráticas da revolução,
também uma revolução socialista deve evoluir diretamente para a
revolução mundial. A falha da revolução em se expandir levou à
tomada do poder pela conservadora burocracia de Estado sob comando
Stalin em 1923, o que converteu o isolamento da União Soviética de
uma profunda derrota em uma “vitória” retórica, com a doutrina
nacionalista, antimarxista de “socialismo em um só país”.
Conforme Stalin consolidava seu poder, a nova casta dominante também
exigia o renascimento da família monogâmica como o bastião desse
“socialismo” em um país – assim como também foi um bastião
da contrarrevolução fascista em países capitalistas.
A
contrarrevolução política stalinista simplesmente fez correr ao
contrário o filme da revolução na área dos direitos das mulheres.
As seções de mulheres do partido foram liquidadas em 1929; a
homossexualidade foi tornada crime em 1934; o aborto, que tinha sido
legalizado em 1920, foi tornado ilegal em 1936; de 1935 a 1944, o
divórcio foi se tornando cada vez mais caro e complicado; e em 1944,
mesmo a educação mista foi abolida. Para conseguir aplicar essas
medidas, Stalin confiou na influência conservadora do campesinato,
que em geral foi o único a recebê-las positivamente.
É
claro que em cada etapa os apologistas stalinistas encontrariam
razões econômicas e sociais para cada uma das medidas
contrarrevolucionárias de Stalin. Como Trotsky disse em A
Revolução Traída, “Não se pode ‘abolir’ a família,
deve-se substituí-la. A verdadeira emancipação das mulheres é
irrealizável na base da ‘escassez socializada’”. Assim,
mesmo o governo revolucionário de Lenin e Trotsky teve que enfrentar
horrendos problemas, especialmente a respeito da família e a
emancipação das mulheres. Por exemplo, em 1922, Krupskaya estimou
que havia sete milhões de crianças sem abrigo, enquanto
Lunacharsky, comissário da educação, estimou nove milhões. A
adoção teve de ser ilegalizada em 1926 para impedir a exploração
do trabalho infantil pelo campesinato! A “conquista” principal de
Stalin foi transformar essas condições difíceis em uma
racionalização para confiar todo o poder a uma panelinha
conservadora contrarrevolucionária que se adaptou ao atraso para
sobreviver.
As
mulheres sob o Stalinismo terceiro-mundista
Na
Iugoslávia, China, Vietnã do Norte e Cuba, lideranças
pequeno-burguesas comandando exércitos baseados no campesinato
conseguiram, por causa de circunstâncias históricas excepcionais,
derrubar o capitalismo, apesar de seus programas “democráticos”
completamente pró-capitalistas. Este fato por si só permitiu a
estes países desempenhar um papel livre de subserviência política
e econômica direta ao imperialismo; ou seja, lhes permitiu cumprir a
tarefa básica da revolução anticolonial. Mas estas vitórias
ocorreram como confrontos militares que foram perdidos pelas forças
burguesas nativas e seus aliados imperialistas, apesar dos melhores
esforços das lideranças “revolucionárias” para vender a luta
em troca de uma “revolução” contida com segurança sob o
capitalismo (como aconteceu na Argélia e situações semelhantes). O
proletariado, vítima de derrotas anteriores, não possuía uma
liderança e não conseguiu se desempenhar papel ativo na disputa
para tomar o poder nessas revoluções.
Como
consequência, o que surgiu não foi uma democracia proletária, mas
regimes tão burocraticamente deformados como o que surgiu a partir
da degeneração da revolução na União Soviética, ou seja,
Estados operários deformados. Dentro desses regimes, mais uma vez a
emancipação das mulheres é o indicador mais preciso da emancipação
geral. Embora às mulheres tenha sido concedido a igualdade formal,
nenhum esforço consistente e concentrado tem sido feito para
libertá-las da escravidão doméstica. Enquanto as mulheres têm
aumentado o seu acesso aos papéis socialmente produtivos, eles
geralmente se restringem àquelas áreas que são uma simples
extensão do trabalho doméstico, como a têxtil e de enfermagem. No
Vietnã do Norte, depois de 26 anos de guerra, as mulheres ainda não
são autorizadas a desempenhar um papel de combate no exército
regular. E só as exigências da guerra obrigaram a burocracia do
Vietnã do Norte a estabelecer berçários e creches. O controle da
natalidade e aborto são legalizados e ilegalizados ao capricho da
burocracia.
Politicamente,
as mulheres não são mais ou menos marginalizados do que seus
maridos na ausência de democracia proletária. Na ausência de
seções especiais do partido para as mulheres, não há veículos
especiais para treinar e equipá-las a entrar no partido. O
recrutamento de mulheres é geralmente feito através da exortação
moral. A maioria das mulheres é desviada para Federação
Democrática das Mulheres local, onde podem circular petições para
a paz, justiça e igualdade. Na China, a Federação Democrática das
Mulheres, que afirmou certa vez uma adesão de 70 milhões, foi
dirigida pela esposa de Liu Shao-chi; por conta disso foi abolida
pela Revolução Cultural!
Em
países atrasados e coloniais, classes pequeno-burguesas
oprimidas pelo feudalismo e pelo imperialismo, sobretudo o
campesinato, são mais numerosos do que o proletariado. A fim de
chegar ao poder, o proletariado deve mobilizar essas classes atrás
dele na luta contra o imperialismo e dos direitos democráticos
básicos. No entanto, o proletariado é a única força
consistentemente revolucionária e anticapitalista nesses países. A
fim de derrubar o capitalismo e começar um caminho desobstruído
para o socialismo, a revolução deve ser feita em termos do
proletariado e do seu programa. A família como unidade econômica
escravizando mulheres poderia, então, ser substituída através da
socialização dos meios de produção e reprodução da força de
trabalho. Mas a revolução que repousa sobre o campesinato ou de uma
fusão dos interesses dos camponeses e trabalhadores (ou seja, em um
programa modificado de uma seção da pequena burguesia) resulta em
que, para o campesinato, a família é a unidade econômica existente
da agricultura de pequena escala, ao contrário das fábricas e
indústrias socializadas dos trabalhadores. Ao contrário dos
trabalhadores, os interesses de classe dos camponeses são baseados
no aprofundamento da propriedade privada de pequenas parcelas, o que
significa que conservam a estrutura familiar. Mas os camponeses são
incapazes de reorganizar a sociedade. Sua influência conservadora só
pode ser superada através da liderança dos trabalhadores.
Assim,
a interrelação entre a questão da terra e da família é uma chave
para a compreensão dos ziguezagues dos Estados operários
degenerados e deformados. Pois a industrialização exige um
excedente de alimentos; um excedente de alimentos requer mecanização;
mecanização requer industrialização, etc. Como quebrar este ciclo
vicioso? A Nova Política Econômica (NEP), a acumulação primitiva
socialista (o imposto em espécie), persuasão e exemplo foram os
métodos de Lenin e Trotsky. Decretos burocráticos, cujos parâmetros
são apenas os precipícios da catástrofe, são o método do
Stalinismo, que vai de Stalin e seu lema “kulaks, enriquecer-vos”,
bem como da Nova Democracia de Mao, à coletivização forçada e ao
Grande Salto Adiante. Durante o Grande Salto Adiante e a
coletivização forçada de Stalin, as mulheres foram incentivadas a
participar na produção social, e a família tendeu a ser
subordinada. Mas estas medidas não correspondem ao ritmo real de
desenvolvimento econômico, e nenhum substituto para a família como
uma unidade econômica foi desenvolvido. Os regimes Stalinistas foram
assim forçados a fortalecer a estrutura familiar como a única saída
não revolucionária para o caos que haviam criado e para conciliar o
campesinato enfurecido. O proletariado, precisamente a classe para
quem a família não desempenha nenhum papel econômico, está
destinado pela história a liderar a luta pela emancipação da
mulher.
As
mulheres e a Revolução Permanente
Embora
a exploração de classe seja o eixo principal da luta social, não é
a única forma de opressão social. Insensibilidade às formas
especiais de opressão – nacional, racial, geracional, bem como
sexual – é uma forma de oportunismo. Economismo, a ideologia dos
burocratas sindicais e seus puxa-sacos, prospera em tal oportunismo.
No entanto, a recusa de ver a natureza interligada da opressão
especial e da luta de classes, a postular vias “alternativas”
(por exemplo, o feminismo burguês) que não seja a luta de classes
para lidar com a opressão especial, é ao mesmo tempo reacionário e
utópico. Porque a questão da opressão das mulheres e da família é
fundamental para a sociedade de classes, a solução só pode ser um
desenraizamento global de propriedade capitalista e a preparação
para uma sociedade comunista sem classes. Apenas um partido
proletário internacional, consciente das suas tarefas e missão,
pode proporcionar a liderança necessária para tal reviravolta.