Seguindo a
tradição, todo final de ano postamos um material histórico de estímulo à determinação e à vontade revolucionária de nossos militantes, leitores e
simpatizantes. O presente editorial foi o último artigo conhecido escrito por
Rosa Luxemburgo, após a derrota da rebelião Espartaquista e horas antes de sua
prisão e assassinato pelas mãos do governo alemão. Originalmente publicado em
Rote Fahne em 14 de janeiro de 1919. Esta versão foi copiada de marxists.org.
A ordem reina em Varsóvia, anunciou o ministro Sebastini na Câmara francesa quando, depois de um terrível assalto sobre o bairro de Praga, a soldadesca de Suvarov entrou na capital polonesa para começar o seu trabalho de carrascos contra os insurgentes.
“A ordem reina
em Berlim!”, proclama triunfalmente a imprensa burguesa entre nós, bem como os
ministros Ebert e Noske e os oficiais das tropas vitoriosas,
para quem a gentalha pequeno-burguesa de Berlim agita os lenços e emite os seus
hurras. A glória e a honra das armas alemãs estão a salvo perante a história
mundial. Os que combateram miseravelmente no Flandres e em Argonne podem agora
restabelecer o seu nome mediante a brilhante vitória atingida sobre trezentos
espartaquistas que lhes resistiram no prédio do [jornal socialdemocrata] Vorwaerts. As primeiras e
gloriosas irrupções das tropas inimigas na Bélgica e os tempos do general Von
Emmich, o imortal vencedor de Lieja, tornaram-se pálidos ao serem comparados com
este das façanhas efetivadas pelos Reinhardt e os seus “camaradas” nas ruas de
Berlim. Os delegados dos sitiados no Vorwaerts, enviados como
parlamentares para tratarem da sua rendição, foram destroçados a pancadas de
garrote pela soldadesca governamental, e isto aconteceu até tal ponto que não
foi possível reconhecer os seus cadáveres. Quanto aos prisioneiros, foram
pendurados dos muros e assassinados de tal maneira que muitos deles tinham o
cérebro fora do seu crânio. Quem lembraria ainda, depois destes fatos gloriosos, nas
vergonhosas derrotas impingidas aos alemães pelos franceses, os ingleses e os americanos? Spartacus é o inimigo e Berlim o campo de batalha em que somente
sabem vencer os nossos oficiais. Noske, “o operário”, é o general que sabe
organizar a vitória ali onde Lundendorff fracassa.
Como não
pensar aqui na matilha vitoriosa que impunha anos antes “a ordem” em Paris,
nessa bacanal da burguesia sobre os cadáveres dos combatentes da Comuna?
Era a mesma burguesia que acabava de capitular vergonhosamente face aos
prussianos e que tinha abandonado a capital do país ao inimigo de fora para
fugir ela própria como covardes abjetos. Então é que puderam mostrar a sua viril coragem os filhinhos-de-papai e toda a “juventude dourada” que mandava em Versalhes face
aos proletários parisienses mal equipados e sem armas, contra as suas mulheres
e os seus filhos! Estes filhos de
Marte, pregados até o dia anterior ante o inimigo estrangeiro, souberam de
repente ser cruéis e bestiais em face de umas vítimas sem defesa, em face de
umas centenas de prisioneiros e moribundos.
“A ordem reina em Varsóvia!”, “A ordem reina em Berlim!”. Eis como proclamam as suas vitórias os guardas da “Ordem” através de todos os exércitos que se estendem de um lado para outro da luta histórica mundial. A destituição dos vencedores não indica mais do que o final de uma etapa da “Ordem” que deve ser mantida e proclamada periodicamente, mediante toda a classe de sangrentos assassinos, sem deter-se na sua marcha para o seu destino histórico, quer dizer, para o seu fim.
“A ordem reina em Varsóvia!”, “A ordem reina em Berlim!”. Eis como proclamam as suas vitórias os guardas da “Ordem” através de todos os exércitos que se estendem de um lado para outro da luta histórica mundial. A destituição dos vencedores não indica mais do que o final de uma etapa da “Ordem” que deve ser mantida e proclamada periodicamente, mediante toda a classe de sangrentos assassinos, sem deter-se na sua marcha para o seu destino histórico, quer dizer, para o seu fim.
O quê tem
agregado esta semana aos nossos ensinamentos? Em primeiro lugar, ainda no meio
da luta e dos gritos vitoriosos da contrarrevolução, os proletários
revolucionários puderam chegar a medir os acontecimentos e os seus resultados
com a grande medida da história. E isto aconteceu assim porque resulta que a
Revolução não tem tempo a perder e, em consequência, persegue a sua vitória por
cima das tumbas e por baixo das habituais vitórias e derrotas.
Reconhecer as
suas linhas de orientação e seguir os seus caminhos com plena consciência é a
tarefa fundamental de todos os que lutam pela vitória do socialismo
internacional.
Era possível
esperar uma vitória definitiva do proletariado revolucionário, na sua luta contra
os Ebert—Scheidemann, para aceder a uma ditadura socialista? Decerto que não,
sobretudo se se considerarem devidamente todos os fatores chamados a decidir
sobre a questão. O ponto vulnerável da causa revolucionária neste momento é a política
imatura da grande massa de soldados que ainda permitem aos seus oficiais que os
mandem contra os seus próprios irmãos de classe. De resto, o não amadurecimento
do trabalhador-soldado não é mais do que um sintoma da imaturidade geral em que
ainda se acha imersa a revolução alemã.
O campo, que
é donde procedem a maioria dos soldados, fica tanto depois como antes fora do
campo de influência da revolução. Berlim é até o presente, face ao resto do
país, algo assim como um ilhéu. Os centros revolucionários da província (os de
Renânia, Wasserkant, Brunschwitz, Saxe e Wurtemberg nomeadamente) estão de
corpo e alma do lado do proletariado berlinense, mas polo momento falta uma
concordância direta na ação, que é a única que pode proporcionar uma
incomparável eficácia ao arranque e a combatividade dos operários de Berlim.
Além disso, a luta econômica (que é origem de verdadeiras fontes vulcânicas em
que se alimenta a revolução) acha-se ainda numa fase claramente inicial.
Disso tudo
pode deduzir-se claramente que não é razoável contar polo momento com uma
vitória de tipo decisivo. A luta destas últimas semanas teve como desenlace o
resultado das citadas insuficiências. Sempre há um disparo inicial, mas qual
era na realidade o ponto de partida da última semana de luta? Como já aconteceu
em casos precedentes, como já aconteceu no 6 de Dezembro, como já aconteceu no
24 de Dezembro, desta vez também esteve a origem numa provocação brutal pela
parte do governo. Como no caso do assassinato dos manifestantes desarmados,
como no caso da matança dos marinheiros, desta vez foi o atentado da Prefeitura
da polícia a causa originária de todos os acontecimentos. E é que a revolução
nem sempre tem hipóteses de agir seguindo as suas livres decisões, em terreno
descoberto e depois de um bom plano de manobras idealizado por algum bom estratega.
Os seus inimigos tem também a sua iniciativa, e por vezes inclusive são eles
quem a tomam, que por certo é o que se passa geralmente.
Porém, ante o
fato da insolente provocação do governo Ebert—Scheidemann, os operários
revolucionários estavam forçados a pegarem nas armas. Com efeito, para a
revolução, pode dizer-se que era uma questão de honra responder o mais rapidamente
possível e com todas as forças ao ataque, porque se assim não fosse teria sido
impulsada à contrarrevolução, a uma nova etapa repressiva, com o que teriam
resultado comovidas as fileiras revolucionárias e diminuído o crédito moral da
revolução alemã.
A resistência
surgiu tão espontaneamente, com uma energia tão evidente, do mesmo seio das
massas berlinenses, que do primeiro momento pode dizer-se que a vitória moral
esteve do lado da rua. Uma lei interior da revolução é a da impossibilidade de
esperar na inatividade depois de que se deu um passo para a frente. A melhor
manobra é uma boa viragem inesperada e audaciosa. Esta regra elementar de toda
a luta é que rege com maior razão todos os passos da revolução. Nesta ocasião
haveria de demonstrar, aliás, o são instinto, a força interior sempre fresca do
proletariado berlinense e uma combatividade do mesmo que não se limitou a
reintegrar Eichorn nas suas funções (como tinha demandado), mas que impulsionou a massa para ir em busca
de outros redutos da contrarrevolução, como é a imprensa burguesa, representada
de primeira mão pelo Vorwaerts. Se todas estas iniciativas surgiram
espontaneamente da massa é porque esta sabia que a contrarrevolução não se
havia de conformar com a derrota e que havia de procurar a provocação como
fosse uma batalha onde se mediram todas as forças de ambos os combatentes.
Aqui também
depararemos com uma das grandes leis históricas da revolução, contra a qual
estilhaçam todas as sutilezas próprias dos pequenos maquiavélicos “revolucionários”
ao estilo do U.S.P.D., que em cada ocasião de lutar não procuram mais do
que o seu correspondente pretexto para se bater em retirada. O problema
fundamental de toda revolução (neste caso é o da queda do governo Ebert—Scheidemann)
surge em cada caso com toda a atualidade, porque cada episódio da luta
descarta, com a fatalidade das leis naturais, todo compromisso com a calmaria
ou com as gargalhadas da politicagem reformista, exigindo em todo o
momento o máximo por pouco maduras que forem as circunstâncias... Abaixo o
governo de Ebert—Scheidemann! Esta é a palavra-de-ordem que emerge como
inevitável de cada episódio da nossa atual crise, tornando na única fórmula
capaz de exprimir o senso e o significado de todos os conflitos parcelares, e
de levar a luta até o seu ponto culminante.
O resultado
desta contradição entre o agravamento do objetivo e as insuficiências prévias
para o seu cumprimento tem como concreção o estabelecimento da fase inicial do
desenvolvimento revolucionário, no decurso do qual as lutas parciais sempre
acabam com uma “derrota” formal. Mas a revolução é a única forma de “guerra” em
que (por lei de vida que lhe é própria) a vitória final apenas pode ser
atingida através de uma série de “derrotas” prévias.
O quê é que
nos mostra se não toda a história das revoluções modernas e do socialismo? O
primeiro facho que iluminou a luta de classes na Europa foi a insurreição dos
sedeiros de Lyon em 1831, que terminou com uma flagrante derrota. O movimento dos Cartistas na
Inglaterra concluiu também com uma derrota. O levantamento do proletariado em
Paris, durante as jornadas de 1848, desembocou igualmente numa esmagadora
derrota. E a Comuna de Paris teve semelhante desenlace... Todo o
caminho do socialismo está efetivamente asfaltado de derrotas, apesar do qual
vemos que a história do mesmo avança inexoravelmente, passo a passo, para a
vitória que há de ser definitiva. Onde estaríamos hoje sem estas “derrotas” das
que tiramos a experiência histórica que nos permite reconhecer a realidade das
coisas em toda a sua dimensão? Na atualidade, quando temos conseguido chegar já
ao limiar da batalha final, é precisamente quando melhor podemos reconhecer que
é sobre todas essas “derrotas” sobre as que nós ficamos em pé. Não podemos
prescindir de nenhuma delas, porque cada uma das mesmas faz parte da nossa
força atual.
Este é
justamente o contraste e a aparente contradição que diferencia as lutas
revolucionárias das lutas parlamentares. Na Alemanha contamos com quarenta anos
de “vitórias” parlamentares, de forma que pode dizer-se que durante todo este
tempo estivemos marchando de vitória em vitória, sendo o resultado a grande
prova histórica de 4 de Agosto de 1914: a derrota política e moral mais
catastrófica e inesquecível.
As revoluções, polo contrário, não nos tenham achegado mais do que contínuas derrotas, mas inevitáveis estas derrotas são a melhor garantia da nossa vitória final... Claro que isso tudo entranha uma condição! E é a de sabermos em que circunstâncias teve lugar cada derrota, quer dizer, se esta foi o resultado de umas massas imaturas que se lançam à luta, ou de uma ação revolucionária paralisada no seu interior pela indecisão, a fraqueza e a falta de radicalismo.
Dois exemplos
típicos de ambos os casos poderiam ser a revolução francesa de Fevereiro e a
revolução alemã de Março. A ação heroica do proletariado de Paris em 1848
converteu-se na energia mais vivificadora que cabe para o proletariado de todo
o mundo, enquanto os lamentáveis desfalecimentos da revolução alemã de Março,
do mesmo ano, viram-se metamorfoseados numa espécie de pesada cadeia para todo
o desenvolvimento histórico ulterior da Alemanha, cujos efeitos regressivos
podem ser rastejados mesmo nos acontecimentos mais recentes da nossa revolução
e na crise dramática que acabamos de viver.
Como será
vista, em tal caso, a derrota da nossa Semana de Spartacus à luz da mencionada
perceptiva histórica? Como o resultado de uma audaz energia revolucionária
perante o insuficiente amadurecimento da situação, ou como o desenlace de uma
ação empreendida sem a necessária convicção revolucionária?
De ambas as
formas! Porque a nossa crise tem, com efeito, um duplo rosto, o da
contradição entre uma enorme decisão ofensiva por parte das massas e a falta de
convicção por parte dos chefes berlinenses. Falhou a direção. Mas este é o
defeito menor, porque a direção pode e deve ser criada pelas massas. As massas são com efeito o fator decisivo, porque são a rocha sobre a que será edificada
a vitória final da revolução. As massas cumpriram com a sua missão, porque
fizeram desta nova “derrota” o elo que nos une legitimamente à cadeia histórica
de “derrotas” que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional.
Podemos ter a certeza de que desta “derrota” também há de florescer a vitória
definitiva.
A ordem reina
em Berlim!... Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não reparastes em que a
vossa “ordem” está a alçar-se sobre a areia. A revolução se alçará amanhã com a
sua vitória e o terror irá pintar nos vossos rostos ao ouvir-lhe anunciar com
todas as suas trombetas: ERA, SOU E SEREI!