Documento dos
Trotskistas Franceses
Este
documento foi escrito em outubro de 1953 pelos trotskistas franceses que
compunham a maioria do Partido Comunista Internacionalista (PCI) em oposição a
Michel Pablo. Posteriormente ele foi publicado em inglês no primeiro Boletim do Comitê Internacional, em 1954. A tradução para o português foi
realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em maio de 2012 a partir da versão
disponível em marxists.org
Os
sucessivos estágios do revisionismo pablista
1. Com o
Terceiro Congresso Mundial, a Quarta Internacional entrou em uma crise que tem
piorado constantemente e hoje ameaça a sua própria existência. A raiz dessa
crise se encontra na penetração, dentro da liderança da Internacional, de uma
ideologia alheia ao trotskismo: o pablismo revisionista e liquidacionista.
2. As principais ideias teóricas do pablismo foram formuladas por Pablo como contribuições pessoais durante o curso da discussão sobre a zona intermediária [1] (1949-50). Desorientado pela transformação das relações de produção nos países da zona intermediária, atribuindo, além disso, a vitória da revolução na Iugoslávia e na China sob a liderança de partidos centristas de origem stalinista às próprias características do stalinismo, Pablo, usando os erros sectários dos trotskistas chineses como pretexto, iniciou uma revisão fundamental das nossas perspectivas históricas. No lugar da concepção de revolução proletária, ele colocou a de séculos de transição entre o capitalismo e o socialismo sob domínio burocrático; ele introduziu a ideia de que a ação militar-burocrática da burocracia stalinista é uma força histórica independente, capaz de tomar o lugar da ação das massas exploradas para completar as suas tarefas históricas; ele declarou que o stalinismo estava lutando objetivamente pela revolução proletária em países capitalistas e que na URSS e nos países da zona intermediária, ele só podia ser repreendido por causar um sofrimento que era historicamente desnecessário às massas; enquanto isso, a necessidade histórica da Quarta Internacional está no fato de que o stalinismo “definitivamente passou para o lado da ordem burguesa” nos países capitalistas (quer dizer, que a burocracia stalinista não luta nem conscientemente e nem “inconscientemente” pela revolução proletária, mas busca primariamente manter o status quo em todas as esferas), e vai levar os Estados operários em direção à ruína na URSS e na zona intermediária se não for derrubada pelas massas.
3. Foi em
“Para onde vamos?” que Pablo desenvolveu estas premissas teóricas até as suas
conclusões finais e onde começa a estabelecer as conclusões políticas e táticas
para elas. A ação revolucionária das massas exploradas desde então são, para
ele, nada mais do que uma força suplementar a ser adicionada às forças
militares e técnicas da burocracia stalinista, cuja natureza e função histórica
mudaram drasticamente; a História para Pablo não é mais uma de luta entre
classes, mas uma de luta entre blocos, entre o regime capitalista e o mundo
stalinista. Ele nega que o caráter do período separando-nos da guerra
(considerada por ele como iminente) é um período histórico distinto envolvendo
tarefas específicas para os trotskistas e, sob a designação de
“guerra-revolução”, ele identifica uma guerra conduzida pela burocracia do
Kremlin com a revolução proletária; ele substitui a perspectiva trotskista do
derrubamento revolucionário da burocracia pela ideia de que a burocracia vai
cumprir o papel de liderança “objetiva” da revolução, e de que a burocracia vai
ter um desaparecimento gradual e subsequente com o desenvolvimento das forças
produtivas. Dentro de tal perspectiva, a Quarta Internacional perde toda a sua
necessidade histórica, e mesmo todo o seu significado.
4. Graças à
tática de manipulação burocrática, acompanhada por uma inteligente camuflagem,
Pablo conseguiu introduzir suas ideias básicas de uma forma levemente velada
nas teses da Nona Plenária do Comitê Executivo Internacional (subsequentemente
adotadas pelo Terceiro Congresso Mundial) e assim atingiu um caráter eclético e
contraditório. Reforçado pela maioria que então possuía, ele foi capaz de
desenvolver, na Décima Plenária do CEI, as conclusões táticas da sua orientação
liquidacionista. Ele previu que a política da burocracia do Kremlin e a dos
partidos stalinistas iriam girar crescentemente à esquerda, enquanto as massas
iriam se colar a eles; a partir disso ele deduziu uma tática de entrismo nos
partidos stalinistas com capitulação política dos trotskistas, entrismo “sui
generis”: estas ideias e esta tática liquidacionista foram depois estendidas
aos partidos reformistas e para todas as organizações de massa sob liderança
pequeno-burguesa (o MNR boliviano, o movimento peronista na Argentina, o
movimento de Ibáñez no Chile, etc.).
5.
Entretanto, os eventos trouxeram refutação atrás de refutação para as previsões
pablistas. Depois do 19º Congresso do PC da URSS, os partidos stalinistas ao
redor do mundo orientaram suas políticas, não rumo à esquerda como Pablo havia
previsto, mas rumo à direita. Com a política da Frente Única Nacional, a atual
posição dos partidos stalinistas como o PC francês e o PC italiano está muito
mais à direita do que em qualquer outro momento no passado. O levante
revolucionário das massas, do qual a greve geral de agosto de 1953 na França é
a mais alarmante manifestação até agora, elevou, sob estas condições, a crise
do stalinismo a um nível superior, colocando os militantes comunistas em
conflito direto com seus líderes, enquanto pela primeira vez na história, a
radicalização das massas na França não está passando através das organizações
stalinistas, que continuam perdendo seus membros. O papel decisivo do partido
revolucionário independente, enquanto um polo para atrair e organizar os militantes
comunistas que entram em conflito com a liderança stalinista, surge então de
forma avassaladora.
De forma igualmente avassaladora, parece que o
levante revolucionário nos países capitalistas, longe de provocar a irrupção de
uma “guerra suicida” pelo imperialismo, serve para atrasar o lançamento efetivo
de guerra.
Finalmente, a burocracia do Kremlin, situada
num beco sem saída entre o imperialismo que marcha rumo a uma guerra
contrarrevolucionária e a pressão das massas proletárias, que foram estimuladas
pelo progresso da economia soviética e o levante revolucionário mundial, e
vendo o equilíbrio de classes em escala mundial se quebrando, equilíbrio do
qual ela nasceu e sob o qual se baseia o seu poder na URSS, entrou em um estado
de agonia convulsiva que está se dividindo em tendências opostas; na verdade,
contrariamente às declarações de Pablo, a burocracia é incapaz como um todo de se basear nas massas
contra o imperialismo e contra as tendências restauracionistas potenciais na
URSS (a orientação de Beria [2]); e
ela é não menos incapaz como um todo
de se basear nas tendências potencialmente restauracionistas contra as massas (orientação
de Malenkov-Khruschev). Acima de tudo, ela está mais preparada do que nunca
para sacrificar os interesses das massas em países como a França e a Itália,
por exemplo, como um preço por concessões limitadas da burguesia na política
externa.
6. Diante de
tal fracasso completo em suas previsões, Pablo começou uma operação em larga
escala de camuflagem e oscilação política, abandonando algumas das suas
posições fundamentais e recuando deliberadamente para poder melhor manter o seu
elemento básico: liquidação da independência
política do trotskismo com relação à burocracia do Kremlin e aos aparatos
burocráticos em geral.
“Condições objetivas” ontem impuseram Estados
operários deformados por séculos. Hoje, Pablo declara que nada deve interferir
no futuro próximo para o estabelecimento da mais aberta democracia proletária.
A guerra era iminente no Terceiro Congresso Mundial e o levante revolucionário
só poderia impelir o imperialismo a uma “guerra suicida”. Hoje Pablo tem a
audácia de escrever que a guerra “agora” se tornou “possível a qualquer
momento” (mas ela já não era ontem?), seja imediatamente ou em “alguns anos”;
que o levante revolucionário está atrasando a guerra e pode até impedi-la! E
ele conclui friamente disso que “nossa tática” (desenvolvida pelo Terceiro
Congresso Mundial e na Décima Plenária do CEI) “permanece (!) válida”.
Enquanto Pablo se recusa, como exigiu
especialmente a maioria da seção francesa, a incluir entre os slogans do
Terceiro Congresso Mundial o tradicional slogan trotskista pela derrubada de
Stalin, hoje ele corretamente declara que a luta para aproximar a derrubada da
burocracia é uma das tarefas básicas da Internacional e fala com lágrimas na
voz de “nossos irmãos soviéticos”, um assunto que era tabu há dois anos. Ontem
a vitória de Mao Tse-Tung “não era exatamente uma vitória do stalinismo”; hoje
Pablo corretamente indica o que a maioria do PCI tem ressaltado por três anos,
que foi apenas o rompimento do Partido Comunista Chinês com o Kremlin que
permitiu a vitória da revolução chinesa.
7. Ao mesmo
tempo, Pablo está reafirmando e desenvolvendo a sua orientação liquidacionista:
insistência sobre um processo revolucionário objetivo que é automático e
irresistível, e que subordina os aparatos burocráticos reformistas e stalinistas,
alterando a sua natureza e função diante dos nossos olhos e que os
transformaria cada vez mais em instrumento das vontades revolucionárias das
massas. A análise de Pablo ganha corda ao considerar o problema da liderança
revolucionária como “objetivamente resolvido”, e ignora o desenvolvimento
desigual da revolução nos países atrasados e nos países avançados, enquanto é precisamente
o atraso da revolução proletária nos países avançados que sublinha a
importância, historicamente mais decisiva hoje do que nunca antes, do fator
consciente para a vitória da revolução.
Pablo ignora a pressão exercida pelo
imperialismo sobre a burocracia do Kremlin e, acima de tudo, ignora o fato de
que a pressão exercida pelas massas soviéticas, longe de transformar o papel da
burocracia e compeli-la a entrar em um curso irreversível de fazer concessões
cada vez maiores às massas, está, ao contrário, fortalecendo a sua vigilância
contrarrevolucionária e a sua autoproteção. Ele prevê, contrariamente à
evidência e alheio a princípios, uma codireção do movimento revolucionário
mundial entre o Kremlin e as massas durante toda a época de transição. Ele não
compreende que a política do Kremlin continuará a oscilar até o fim, até o seu
desaparecimento, e põe o mesmo rótulo sobre a orientação de Beria, durante a
qual a oligarquia dominante tentou encontrar apoio entre as massas contra
forças restauracionistas e o imperialismo, e também a orientação
Khruschev-Malenkov, no qual a oligarquia dominante está buscando apoio nas
forças restauracionistas contra as massas.
Para Pablo, a missão histórica da Quarta
Internacional perdeu todo o seu significado. O “processo revolucionário
objetivo”, sob a guisa do Kremlin, aliado às massas, está tomando
suficientemente bem o seu lugar. É por isso que ele está impiedosamente se
inclinando para liquidar as forças trotskistas, sob o pretexto de integrá-las
ao “movimento de massas tal qual ele existe”.
A salvação da Quarta Internacional exige
imperativamente a imediata expulsão da liderança liquidacionista. Uma discussão
democrática deve ser realizada com todo o movimento trotskista ao redor do
mundo sobre todos os problemas que foram deixados suspensos, obscurecidos ou
falsificados pela liderança pablista durante três anos. Dentro desta
perspectiva, será indispensável para a saúde da Internacional que a maior
autocrítica seja levada adiante em todas as fases e todas as causas do
desenvolvimento da gangrena pablista.
NOTAS DA
TRADUÇÃO
[1] Países
da Europa Oriental ocupados por tropas da União Soviética durante a Segunda
Guerra Mundial e compreendidos entre esta e os países imperialistas.
[2] Lavrentiy
Beria (1899-1953) foi um oficial da polícia secreta stalinista NKVD e político
soviético. Bastante próximo a Stalin, disputou brevemente o poder após a morte
deste em 1953, buscando obter a preferência das massas. Foi derrotado pela
fração da burocracia liderada por Kruschev, preso e condenado à morte.