20.11.11

Lenin e o Partido de Vanguarda (2)

Bolchevismo vs. Menchevismo: o Racha de 1903   

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O segundo congresso do POSDR, realizado em Bruxelas e posteriormente em Londres em Julho e Agosto de 1903, deveria ser a culminância do projeto do grupo do Iskra para criar um partido centralizado baseado num programa compreensível. (Em parte por causa da repressão, o congresso formal de fundação do POSDR em 1898 não modificou a natureza da socialdemocracia russa de ser um movimento de círculos de debate locais). Os economicistas não foram excluídos do congresso, mas ele foi arranjado de tal forma que o grupo do Iskra seria uma maioria decisiva. O grupo do Iskra contava com cerca de dois terços dos 46 delegados do segundo congresso. Do terço restante, cerca de metade eram anti-iskraistas. Esses consistiam de uns poucos economicistas proeminentes (Martynov, Akimov) e a Liga (Bund) Judaica seminacionalista, que reivindicava ser o único representante do proletariado judeu e exigia um partido federativo.

Na primeira fase do congresso, uma maioria iskraista sólida aprovou sua linha. O grupo do Iskra, incluindo futuros mencheviques, votou unanimemente por um programa que incluía elementos posteriormente muito característicos do leninismo. Por exemplo, a seção “Sobre a Luta Sindical” contém a seguinte passagem:

“Até onde essa luta se desenvolva isolada da luta política do proletariado levada pelo partido socialdemocrata, ela leva à fragmentação das forças proletárias e à subordinação do movimento dos trabalhadores aos interesses das classes proprietárias.”
– Robert H. McNeal, Ed., Resoluções e Documentos do Partido Comunista da União Soviética (1974) 

Entretanto, por baixo da aparentemente sólida frente do grupo do Iskra, haviam consideráveis tensões. Uma potencial polaridade era entre Lenin e Martov, que era consistentemente mais conciliatório com os elementos não iskraistas e anti-iskraistas da socialdemocracia russa. Até mesmo antes do congresso, Martov era amplamente conhecido como um iskraista “leve” e Lenin como um “rígido”. Consequentemente, aqueles apoiadores do Iskra que eram a favor de um papel maior para os não-iskraistas num partido unitário tinham Martov como seu líder natural; aqueles desejosos de que os iskaistas mantivessem um controle mais apertado do partido tinham Lenin.

As tensões entre os “rígidos” liderados por Lenin e os “leves” liderados por Martov se manifestou através de uma série de disputas menores desde o começo do congresso. Como é bem conhecido, essa tensão explodiu sobre o primeiro parágrafo das regras que definiam a admissão de membros. O rascunho de Martov definia um membro como quem “presta assistência pessoal ao partido em uma das organizações da qual faça parte”. O critério de admissão de Lenin era “por participação pessoal em uma das organizações do partido”.

A definição mais seleta de Lenin sobre a qualidade de membro foi motivada tanto por um desejo geral de excluir oportunistas (que eram menos passíveis de aceitar os rigores e perigos de uma participação organizativa integral) quanto por um desejo de afastar os diletantes que tinham sido atraídos para a socialdemocracia russa precisamente por causa da sua natureza frouxa de círculos de debate. Interessantemente, foi Plekhanov que ressaltou o aspecto anti-oportunista de um partido mais seleto, enquanto Lenin deu maior ênfase a aspectos de consideração mais prática e conjuntural. Aqui está o centro do argumento de Plekhanov:

“A maior parte da intelligentsia vai ter medo de entrar, contaminados como estão com o individualismo burguês, mas isso fará bem, já que esses indivíduos burgueses geralmente consistem em representantes de todos os tipos de oportunismo. Os oponentes do oportunismo deveriam votar então pelo projeto de Lenin, que fecha a porta da sua entrada para dentro do partido.”
– citado em Leopold H. Haimson, Os Marxistas Russos e as origens do bolchevismo(1955) 

Lenin interviu sobre algo em nível diferente:

“A raiz do erro cometido por aqueles que defendem a formulação de Martov é que eles não somente ignoram um dos maiores males da vida do nosso partido, como também o santificam. O mal é que, em um tempo em que o descontentamento político é quase universal, quando as condições requerem que nosso trabalho seja realizado em completo sigilo, e quando a maioria de nossas atividades tem de ser confinadas a círculos secretos ou até mesmo a reuniões privadas, é extremamente difícil, quase impossível, na verdade, para nós distinguir aqueles que apenas falam daqueles que cumprem suas tarefas.Dificilmente há outro país no mundo onde a confusão entre essas duas categorias é tão comum e tão produtora de tais problemas sem limites como na Rússia…. Seria melhor se dez daqueles que cumprem suas tarefas ficassem fora do partido … do que se um daqueles que apenas falam tivesse o direito e a oportunidade de ser membro do partido. Esse é um principio que me parece indiscutível, e que me obriga a lutar contra Martov” [nossa ênfase]
– “Segundo Discurso na Discussão sobre as Regras do Partido” (15 de Agosto de 1903) 

Com o apoio dos economicistas, membros do Bund e centristas, a formulação de Martov foi aprovada. Entretanto, os economicistas e membros do Bund judaico logo em seguida deixaram o congresso quando este se recusou a aceitar os seus respectivos apelos organizacionais. Isso deu aos “rígidos” de Lenin uma maioria apertada. O racha decisivo ocorreu a respeito da eleição do corpo editorial do Iskra. O antigo conselho editorial continha quatro apoiadores “leves” de Martov e mais Lenin e Plekhanov. Lenin propôs que o corpo editorial fosse reduzido para três membros com ele e Plekhanov formando uma maioria “rígida”. Essa proposta causou um problema altamente emocional já que os veteranos, Axelrod e Zasulich, eram queridinhos sentimentais no partido. Quando a proposta de Lenin foi aprovada, os seguidores de Martov se recusaram a trabalhar tanto no quadro editorial quanto no comitê central.

Um debate muito polêmico é centrado na questão de que Lenin teria informado a Martov seu plano para reduzir o conselho editorial antes do congresso, e Martov teria concordado, etc. A pré-história da luta sobre o conselho editorial é incerta porque aconteceu em discussões privadas. O que é claro é que a falta de disposição de Lenin a se comprometer na questão dependia do resultado sobre o critério para ser militante. Foi definitivamente Lenin que iniciou a luta entre as tendências. Ele se recusou a considerar as diferenças sobre as questão da admissão de membros uma disputa casual, mas insistiu que ela formasse a base de uma representação de maioria-minoria nos órgãos de lideranças do partido.

O período entre o segundo congresso e o começo da revolução de 1905 foi marcado pela erosão da maioria “rígida” de Lenin. Ao longo desse período a maior parte da energia política de Lenin foi dirigida contra aqueles que apoiavam a maioria e que queriam restaurar a unidade, capitulando aos Mencheviques, revertendo as decisões do segundo congresso e liquidando a Tendência Bolchevique.

Os Mencheviques contra-atacaram primeiro num congresso da Liga Estrangeira da Socialdemocracia Russa em outubro de 1903, onde eles conseguiram uma maioria apertada. Quando a Liga se recusou a reconhecer a autoridade dos órgãos de liderança eleitos no segundo congresso, os Bolcheviques se retiraram. Isso finalizou o racha.

Enquanto Plekhanov apoiava a Tendência Bolchevique, ele se privou de um racha definitivo sobre o que parecia ser uma questão puramente organizacional ao invés de uma questão de princípios. Na reunião de uma colateral bolchevique em novembro, ele deixou escapar: “Eu não posso atirar em meus próprios camaradas. É melhor dar um tiro na cabeça do que rachar” (citado em Samuel H. Baron, Plekhanov, Pai do Marxismo Russo [1963]). Daí em diante ele usou sua autoridade para cooptar para o conselho editorial do Iskra os quatro apoiadores de Martov do conselho antigo; Lenin se retirou em protesto.

Durante 1904, um comitê central composto apenas por bolcheviques, ao qual Lenin se juntou após sair do Iskra, tomaria o rumo oposto de Plekhanov. Lenin, acreditando que seus apoiadores eram mais fortes entre os membros do comitê central na Rússia do que entre o meio mais intelectual no exílio, chamou um novo congresso do partido para restabelecer sua maioria e recapturar o agora órgão de informação menchevique, o Iskra. O comitê central se opôs a um novo congresso, cooptou três mencheviques e efetivamente expulsou Lenin daquele órgão.

No fim de 1904, Lenin rompeu completamente com os órgãos centrais oficiais do partido e estabeleceu um comitê central realmente bolchevique chamado Escritório dos Comitês da Maioria. No começo de 1905, os Bolcheviques criaram seu próprio órgão, o Vperyod.

A lógica da disputa de tendências levou os Mencheviques à direita; gradualmente, eles repetiram as políticas dos derrotados economicistas. Martov e Plekhanov escreveram artigos de autocrítica sobre o velho Iskra, declarando que tinham sido unilaterais (em outras palavras, leninistas) nos seus ataques aos economicistas. A fusão orgânica dos Mencheviques e economicistas foi assinalada pela cooptação de A.S. Martynov para o conselho editorial do novo Iskra.

Os leninistas viram sua luta contra os mencheviques tanto prática quanto organizativamente, como uma repetição da luta dos iskraistas contra os economicistas. Um dos braços direitos de Lenin, Lyadov, instruiu um apoiador dos Bolcheviques no fim de 1904 a refazer a campanha contra os economicistas.

“Nós não estamos aqui para deixar o partido, mas para lutar por tudo que vale a pena…. Nós devemos conquistar toda a Rússia [leia-se os comitês] apesar das instituições centrais, e nós devemos fazer isso do mesmo modo como o Iskra fez uma vez. Nós temos que repetir o trabalho do Iskra e completá-lo.”
– citado em J. L. H. Keep, O Nascimento da socialdemocracia na Rússia (1963) 

No começo de 1905, Lenin estava convencido de que a liderança dos Mencheviques era incorrigível e que eram organizativamente oportunistas sem princípios, e declarou um racha completo. Em contraste com a política quanto aos economicistas, Lenin opôs a permissão para que os líderes mencheviques participassem de um novo congresso do partido, no qual ele tinha a intenção de fundar um Partido Bolchevique:

“Os centros [mencheviques] podem e devem ser convidados, mas lhes garantir direito de voto é, eu repito, loucura. Os centros, é claro, não virão ao nosso congresso de forma alguma; mas porque lhes dar uma nova chance de cuspir na nossa cara? Por que essa hipocrisia, esse jogo de esconde-esconde? Nós falamos do racha de forma aberta, nós chamamos os seguidores do Vperyod para um congresso, nós queremos organizar um partido do Vperyod, e nós queremos romper imediatamente com quaisquer e com todasas conexões com os desorganizadores e ainda assim, temos a lealdade perturbando nossos ouvidos, nos chamando a agir como se um congresso de reconciliação do Iskra com o Vperyod fosse possível.” [ênfase no original]
– “Carta para A.A. Bogdanov e S.I. Gusev”, 11 de fevereiro de 1905 

Como Lenin projetou, os Mencheviques boicotaram o terceiro congresso (todo composto por Bolcheviques) ocorrido em Londres em abril de 1905 e deram brecha ao agrupamento de seus próprios rivais.

O que leninismo significava em 1904? Acima de tudo representava um firme comprometimento com a socialdemocracia revolucionária, particularmente com o papel de liderança de um partido proletário na luta contra o czarismo absolutista. Além disso, representava uma atitude intransigente com relação aos oportunistas declarados, como os líderes economicistas, e uma atitude de remover esperanças na sua possível conversão para as políticas revolucionárias. Lenin estava comprometido com um partido centralizado, disciplinado e por consequência intransigentemente hostil com a característica de círculos de debate amplos do movimento socialdemocrata russo. A não ser no critério de aceitação de membros, essas diferenças entre os Bolcheviques de 1904 e os Mencheviques eram difíceis de serem expressas como princípios contrários. Elas se manifestaram ao redor de problemas organizativos concretos e pareceram para a maioria dos que estavam de fora (como Kautsky) representar diferenças de grau muito mais do que diferenças de princípio.  

A Polêmica Menchevique de Trotsky 

Entre as numerosas críticas anti-Lenin em 1903-04, o texto de Trotsky “Nossas Tarefas Políticas” foi muito menos significante que aqueles de Axelrod, Plekhanov e Luxemburgo. Entretanto, por causa da autoridade que Trotsky viria a ter como um grande revolucionário, vários reformistas e centristas dão vida nova à sua polêmica de 1904. Tony Cliff, líder de longa data do Socialistas Internacionais britânicos (agora Partido Socialista dos Trabalhadores), devotou um ensaio inteiro à “profecia” de Trotsky de que as concepções organizativas de Lenin levariam o partido a “substituir por si próprio as classes trabalhadoras” (“Trotsky sobre substituísmo”, International Socialism, Outono de 1960; reimpresso na coleção do Socialistas Internacionais, Partido e Classe [Londres]). Em particular, esses socialdemocratas de esquerda, alegando que Trotsky previu que o leninismo leva ao stalinismo, invariavelmente citam a passagem a seguir:

“Na política interna do partido, esses métodos [leninistas], como nós veremos, levam os organizadores do partido a substituir o partido em si próprio, o comitê central [a substituir] os organizadores do partido e finalmente um ditador [a substituir] o comitê central.”
– De “Nossas Tarefas Políticas”, na seção Leon Trotsky, Escritos sobre a Organização Revolucionária (Hamburgo, 1970) 

Por outro lado, os stalinistas exploraram o “Nossas Tarefas Políticas” para argumentar que a hostilidade de Trotsky à burocracia soviética não era nada além do que a expressão de um menchevismo regenerado.

Além de uma grande dose de hostilidade subjetiva em direção a Lenin motivada por um apego sentimental aos pioneiros do marxismo russo, a polêmica de Trotsky, como a de Luxemburgo, é baseada numa concepção ultra-kautskista sobre a questão do partido. Ele vê as tarefas do partido como a de elevar toda a classe a uma consciência socialdemocrata através de um processo longo e pedagógico:

“Um método consiste em tomar o livre pensamento do proletariado, como umasubstituição política do proletariado; o outro consiste de educação política do proletariado, sua mobilização política, para exercer certa pressão sobre a vontade de todos os grupos e partidos políticos….”
“O partido é baseado no dado nível de consciência política do proletariado, e intervêm em cada grande evento político com o objetivo de transferir a linha de desenvolvimento na direção dos interesses do proletariado; e, ainda mais importante, com o objetivo de elevar o nível de consciência, para então se basear num nível de consciência aumentado e novamente usa-lo para alcançar seu duplo objetivo.” [ênfase no original]

Trotsky aqui é altamente influenciado por Axelrod, frequentemente citado na polêmica, que nesse momento decidiu chamar por um inclusivo, não-partidário “congresso dos trabalhadores”. Isso teria como efeito a liquidação do frágil e iniciante POSDR.

Adiar a luta revolucionária pelo poder até que a classe trabalhadora por inteiro tenha alcançado uma consciência socialista é relegá-la ao “dia em que os porcos criarem asas”; no capitalismo, a classe trabalhadora em sua esmagadora maioria não pode transcender completamente a influência ideológica da burguesia. O partido revolucionário de vanguarda deve liderar as massas dos trabalhadores ativos na luta, mas entre esses trabalhadores há muitos nos quais as convicções socialistas serão parciais, inconsistentes e episódicas.

Na sua grandiosa polêmica anti-menchevique desse período “Um Passo para Frente, Dois Passos para Trás” (maio de 1904), Lenin responde sucintamente à posição de Trotsky/Axelrod:

“O partido, como a vanguarda da classe trabalhadora, não deve ser confundido, então, com a classe como um todo. E o camarada Axelrod é culpado apenas desta confusão (que é característica do nosso economicismo em geral)….”
“Nós somos o partido de uma classe, e dessa forma quase toda a classe (e em tempos de guerra, em período de guerra civil, a classe inteira) deveria agir sob a liderança do nosso partido, deveria se aproximar do partido o máximo possível. Mas seria “seguidismo” achar que a classe inteira, ou quase a classe inteira, pode algum dia elevar-se, ainda no capitalismo, ao nível de consciência e atividade da sua vanguarda, do seu partido socialdemocrata.” [ênfase no original]

Deve ser notado que a formulação de Lenin das relações classe-partido ainda não romperam completamente com o “partido de toda a classe” kautskista, uma vez que ele obviamente pressupõe um único partido baseado no proletariado.

Não é substituísmo um partido revolucionário liderar – através de sindicatos, comitês de fábrica, conselhos operários, etc – as massas de trabalhadores que não são conscientemente socialistas. Isso é precisamente a tarefa da vanguarda revolucionária. Substituísmo é quando a vanguarda se envolve em ações militares contra a burguesia sem o apoio das massas não-partidárias. Substituísmo se manifesta em golpismo, terrorismo, guerrilheirismo, dualismo sindical ou ações isoladas durante uma greve geral (como a ação alemã do março de 1921). Apesar de repetidas acusações mencheviques de blanquismo, os Bolcheviques de Lenin não engajaram em tais aventureirismos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial os Bolcheviques tinham se tornado o partido de massa do proletariado industrial russo, superando de longe os mal-organizados Mencheviques díspares.

De qualquer forma, aqueles que usam a polêmica antiga de Trotsky com o leninismo devem acertar as contas com a própria renuncia posterior de Trotsky e crítica a suas posições mencheviques e conciliatórias naqueles anos. Em Minha Vida (1929) ele escreveu sobre o congresso de 1903 do POSDR:

“Meu rompimento com Lenin ocorreu no que pode ser considerado um terreno 'moral' ou até mesmo pessoal. Mas isso era meramente na superfície. No fundo, a separação era de natureza política e meramente se expressou no campo dos métodos organizativos. Eu me considero um centralista. Mas não há dúvida de que naquele tempo eu não compreendia completamente que o partido revolucionário necessitaria de um centralismo intenso e imperioso para liderar milhões de pessoas numa guerra contra a antiga ordem.”

Trotsky nunca autorizou uma reimpressão de “Nossas Tarefas Políticas”, e ela foi explicitamente excluída da edição russa de seus trabalhos publicada antes da usurpação stalinista.  

Por Trás da Polêmica Anti-leninista de Luxemburgo 

O texto de Rosa Luxemburgo “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, publicado no jornal teórico do SPD, Neue Zeit, e no Iskra menchevique, é provavelmente a mais intrinsecamente significativa das polêmicas anti-Lenin seguidas ao racha de 1903. Ela se afasta das questões imediatas e das recriminações pessoais do racha, e ela não cai num clima de unitarismo superficial. As diferenças de Luxemburgo com Lenin existiam tanto no nível dos problemas, tarefas e perspectivas do movimento russo quanto no da natureza da socialdemocracia em geral. Tanto no caso russo quanto no geral, essas diferenças se concentraram na natureza do oportunismo e como combatê-lo.

Suas diferenças sobre o oportunismo socialdemocrata na Rússia podem ser brevemente expressas no que se segue. Antes da revolução de 1905, Lenin via o maior perigo oportunista na adaptação ao czarismo absolutista; Luxemburgo via na subordinação do proletariado russo à democracia burguesa revolucionária fora do poder. Para Lenin, um oportunista socialdemocrata era um diletante pronto a fazer as pazes pessoalmente com a sociedade czarista, e talvez um aspirante a oficial sindical. Para Luxemburgo, um oportunista socialdemocrata era um demagogo radical burguês lutando na verdade por poder governamental, uma versão russa do líder francês radical Georges Clemenceau, um ex-blanquista.

Para Lenin entre 1901 e 1904, e para a tendência do Iskra como um todo, a maior expressão do oportunismo socialdemocrata russo era o economicismo, um amálgama de agitação sindical mínima, passiva adaptação ao czarismo liberal, regionalismo organizativo e funcionamento individualista. Luxemburgo não era menos oposta ao puro e simples sindicalismo do que Lenin, mas evidentemente não considerava o economicismo como uma corrente oportunista séria na Rússia, como um sério concorrente pela influência sobre a classe operária. Assim como Lenin tomou o espírito de círculos de debate e o individualismo anarquizante como seus maiores inimigos no nível organizativo, Luxemburgo parecia considerar esses traços um custo indireto inevitável de um determinado estágio do movimento socialdemocrata na Rússia. Quando o proletariado socialista é pequeno, acreditava Luxemburgo, um movimento frouxo de propaganda de círculos de debate locais é o normal e, de certo modo, uma expressão organizativa saudável da socialdemocracia:

“Como realizar uma transição a partir do tipo de organização característica de um estágiopreparatório do movimento socialista – geralmente simbolizado por grupos locais e clubes desconexos – para a unidade de um corpo nacional grande, adequado para ações políticas organizadas sobre todo o vasto território regido pelo Estado russo? Esse é o problema específico com o qual a socialdemocracia russa tem se atrapalhado a algum tempo.”
“Autonomia e isolamento são as características mais pronunciadas da velha forma organizacional. É, dessa forma, compreensível o porquê de o slogan daqueles que querem ver uma organização inclusiva a nível nacional ser 'Centralismo!'…”
“As condições indispensáveis para a realização do centralismo socialdemocrata são: 1. A existência de um grande contingente de trabalhadores educados na luta política. 2. A possibilidade para os trabalhadores de desenvolver sua própria atividade política através de influência direta na vida pública, numa imprensa do partido, em congressos públicos, etc.”
“Essas condições ainda não estão completamente formadas na Rússia. A primeira – uma vanguarda proletária consciente de seus interesses de classe e capaz de dirigir a si própria em atividade política – está apenas agora emergindo na Rússia. Todos os esforços da agitação socialista e da organização deveriam ter o objetivo de acelerar a formação de tal vanguarda. A segunda condição pode ser alcançada somente sob um regime de liberdade política” [ênfase nossa]
– Luxemburgo, “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”

A crença de Luxemburgo numa transição gradual de um movimento de círculos locais até um partido unitário e centralizado não era apenas contraposta ao leninismo, mas logicamente a posicionava fora e à direita do grupo do Iskra em geral antes do racha.

A visão expressa acima está em certo desacordo com a verdadeira prática organizativa de Luxemburgo na parte polonesa do império russo. O Socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo e Jogiches era uma organização de propaganda muito pequena, porém altamente centralizada. E, ao contrário dos Bolcheviques de Lenin, o SDRPeL de Luxemburgo cometeu sérios erros sectários e ultra-esquerdistas (veja “Lenin vs. Luxemburgo Sobre a Questão Nacional”, Workers Vanguard Num.150, 25 de março de 1977).

A menção ao SDRPeL é um lembrete de que não se pode simplesmente tomar “Problemas Organizativos da socialdemocracia Russa” como uma prova dos fatos. Embora por motivações muito diferentes, a socialdemocracia polonesa de Luxemburgo era tão protetora de sua autonomia organizativa quanto era o Bund. O SDRPeL mandou dois observadores ao segundo congresso do POSDR, onde eles negociaram uma autonomia larga dentro de um partido unitário russo. A defesa por Lenin de um partido centralizado de todos o socialdemocratas no império russo desafiava, ao menos em princípio, as prerrogativas organizativas altamente valorizadas de Luxemburgo no SDRPeL.

Luxemburgo procurava o oportunismo da socialdemocracia russa no sentido completamente oposto ao que procurava Lenin. Luxemburgo temia que a intelligentsia da socialdemocracia russa desse nascimento a um parido burguês radical usando retórica socialista, e então suprimisse o desenvolvimento de consciência política de classe entre o proletariado russo. Com esse prognóstico, Luxemburgo viu no centralismo de Lenin, mais do que no menchevismo a mais provável fonte de oportunismo (leia-se adaptação à burguesia). A insistência de Lenin sobre o papel de liderança da socialdemocracia na luta contra o absolutismo e sobre o papel de liderança de revolucionários profissionais no partido pareceu a Luxemburgo (e não apenas a ela) como a característica de um partido radical burguês.

De fato, era comum em círculos mencheviques nesse período acusar os leninistas de serem radicais burgueses em mantos socialdemocratas. Os líderes mencheviques, Potresov, por exemplo, associaram os Bolcheviques aos radicais de Clemenceau. Luxemburgo viu no “jacobinismo” de Lenin o desejo inconsciente de intelectuais radicais burgueses de suprimir a sua base na classe trabalhadora após derrubar o czarismo e chegar ao poder. Ela defendeu um movimento socialdemocrata amplo e frouxo como um freio contra os demagogos burgueses radicais como o ex-blanquista Clemenceau:

“Se nós assumirmos o ponto de vista reivindicado como seu próprio por Lenin e nós temermos a influência de intelectuais no movimento proletário, nós não podemos conceber perigo maior ao partido russo do que o plano organizativo de Lenin. Nada irá com maior certeza escravizar um jovem movimento operário à fome de poder de uma elite intelectual do que esse casaco burocrático apertado….”
“Não vamos nos esquecer de que a revolução que se aproxima de ocorrer na Rússia será uma revolução burguesa e não proletária. Isso modifica radicalmente todas as condições da luta proletária. Os intelectuais russos, também, irão rapidamente ficar impregnados com a ideologia burguesa. A socialdemocracia é no presente momento o único guia do proletariado russo. Mas no dia seguinte ao da revolução, nós veremos a burguesia, e acima de tudo os intelectuais burgueses, buscarem usar as massas como um degrau para sua dominação.
“O jogo dos demagogos burgueses será facilitado se, no presente estágio, a ação espontânea, iniciativa e noção política das seções avançadas da classe trabalhadora for prejudicada em seu desenvolvimento por um protetorado restritivo e um comitê central autoritário.” [ênfase nossa]
– Idem.

Uma premissa central da polêmica anti-leninista de 1904 de Luxemburgo era que o absolutismo czarista seria logo substituído por uma democracia burguesa (“a revolução que logo acontecerá na Rússia será burguesa”). Foi por isso que ela antecipou que demagogia parlamentarista radical seria a a principal expressão do oportunismo socialdemocrata. A revolução de 1905 provou que o prognóstico de Luxemburgo estava errado. A revolução demonstrou que o liberalismo burguês era totalmente covarde e impotente. Ela também demonstrou que a socialdemocracia era a única força revolucionária-democrática no império russo.

Durante a revolução, Luxemburgo condenou os Mencheviques por seguirem os monarquistas constitucionais (Cadetes) e se moveu para perto dos Bolcheviques. Concordando com Lenin sobre o papel de liderança do partido proletário na revolução anti-czarista, o SDRPeL de Luxemburgo e Jogiches formou uma aliança com os Bolcheviques em 1906, uma aliança que durou até 1912 e deu a Lenin a liderança do formalmente unitário POSDR. No quinto congresso do POSDR em 1907, Luxemburgo defendeu a estreiteza e intransigência dos Bolcheviques, embora com algumas reservas “macias”.

“Vocês camaradas da ala direita reclamam amargamente sobre a estreiteza, a intolerância, a tendência em direção a uma concepção mecanicista nas atitudes dos Bolcheviques. E nós concordamos com vocês…. Mas vocês sabem o que causa essas tendências desconfortáveis? Para qualquer um que esteja familiar com as condições partidárias de outros países, essas tendências são muito bem conhecidas: é a típica atitude de uma seção socialista que é obrigada a defender o interesse independente de classe do proletariado contra outra seção igualmente forte. Rigidez é a forma adotada pela socialdemocracia para alcançar seu fim quando os demais meios tendem a transformá-la numa geléia amorfa, incapaz de manter uma linha consistente sob a pressão dos acontecimentos.”
– citado em J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo (1966)

Liberais e atuais socialdemocratas suprimiram sistematicamente referências à aliança próxima de Luxemburgo com o bolchevismo da revolução de 1905 até 1912 e novamente do princípio da Primeira Guerra Mundial até o seu assassinato durante o levante de Spartacus em 1919. Eles, entretanto, exploraram completamente a sua polêmica de 1904 a serviço de um anti-comunismo. Assim, a amplamente difundida coleção Ann Arbor Paperbacks para estudo do comunismo e do marxismo fez uma reimpressão de “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” sob o título calunioso de “Leninismo ou Marxismo?”.

Não menos perniciosos têm sido os esforços de muitos reformistas de esquerda e centristas para apresentar o partido leninista de vanguarda com centralismo democrático como válido apenas para países atrasados, enquanto solidarizam com a posição anti-bolchevique de Luxemburgo em 1904 para países capitalistas avançados. Nós já dissemos que esta foi exatamente a posição do movimentista-reformista Tony Cliff, antes de o leninismo “linha dura” entrar na moda entre a juventude radical no fim dos anos 1960.

É de se esperar que um revisionista de marca maior como Cliff solidarize com Luxemburgo contra Lenin. O que não é de se esperar é que uma organização trotskista (ou seja, leninista) ostensivamente ortodoxa adote a linha “luxemburguista” como válida para países avançados. Ainda assim isso é exatamente o que faz a Organização Comunista Internacionalista francesa (OCI). Em uma introdução para uma edição francesa popular de O Que Fazer?, o líder da OCI Jean-Jacques Marie rejeita a defesa de Lenin de uma vanguarda democraticamente centralizada como peculiar para a Rússia no começo do século XX, e afirma que a posição de 1904 de Luxemburgo é apropriada para um país avançado com um movimento operário altamente desenvolvido.

“A rigidez centralista de O Que Fazer? faz sentido nas características particulares do proletariado russo; quer dizer, de um proletariado nascente que havia acabado de sair do interior impregnado com os costumes da Idade Média, falta de estudo, esmagado por condições de existência similares àquelas do proletariado francês ou inglês no começo do século XIX….”
“O papel da intelligentsia revolucionária como um fator de organização e consciência, da forma com que Lenin retrata, é proporcional ao nível relativo de atraso de um proletariado legalmente privado de qualquer forma que seja de sindicalismo ou organização política.”
“Assim, o conflito entre Lenin e Rosa Luxemburgo, por exemplo, aparece – se deixados de lado seus aspectos pessoais – como a expressão da enorme diferença que separava um dos mais deseducados proletariados da Europa e o proletariado alemão, naquele tempo o mais poderoso e politicamente mais vigoroso e maduro do mundo….”
“Se a luta pela revolução socialista é internacional por essência, suas formas imediatas e também os meios de chegar a ela dependem de inúmeros fatores, entre eles as condições nacionais em que cada partido se desenvolve.”
– introdução ao O Que Fazer? (Paris, 1966)

O ponto de vista que J.J. Marie atribui aqui a Luxemburgo é tão diametralmente oposto à sua posição real que é difícil acreditar que ele tenha alguma vez lido “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”. Como pudemos ver, a oposição de Luxemburgo ao centralismo leninista para a Rússia era precisamente por causa do pouco desenvolvimento do movimento proletário. Em 1904, Luxemburgo era uma centralizadora e disciplinadora no partido alemão porque a direita revisionista era formalmente uma minoria. E isso é explicitamente declarado em “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”:

“A socialdemocracia deve acabar com o tumulto dos protestadores não-proletários contra a sociedade existente dentro dos limites da ação revolucionária do proletariado….”
“Isso só é possível se a socialdemocracia já tiver um núcleo proletário forte, politicamente educado, com suficiente consciência de classe a ponto de ser capaz, como agora na Alemanha, de puxar junto de si, em seu reboque, os elementos saídos de sua classe e pequeno-burgueses que se juntarem ao partido. Nesse caso, maior severidade na aplicação do princípio de centralização e disciplina mais severa, especificamente formulada no estatuto do partido, poderá ser uma efetiva precaução contra o perigo oportunista. É assim que o movimento socialista revolucionário na França se defendeu contra a confusão de Jaures. A modificação da constituição da socialdemocracia alemã nessa direção seria uma medida extremamente oportuna.” [ênfase nossa]

A pressão de Luxemburgo por uma centralização maior no SPD foi bem-sucedida no congresso de Jena dominado pelos radicais em 1905, que adotou uma estrutura organizativa genuinamente centralista. Pela primeira vez os oficiais de cada unidade partidária básica eram chamados à responsabilidade pela executiva nacional. Mais tarde, é claro, o famoso aparato centralizado do SPD foi usado para suprimir a ala esquerda revolucionária liderada por Rosa Luxemburgo.

O ponto central das divergências entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e daí em diante não eram quanto ao nível de centralização, mas quanto à natureza do oportunismo e como combatê-lo. A questão do centralismo e da disciplina deriva seu significado apenas em tal contexto.

A polêmica anti-leninista de Luxemburgo em 1904 foi fortemente condicionada pela frustração por sua vitória essencialmente vazia sobre o revisionismo bernisteiniano. O revisionismo foi formalmente rejeitado pelo SPD, os oportunistas mudaram de rumo e as atividades políticas do partido se mantiveram praticamente as mesmas de antes, num espírito de expectativa passiva. Não muito depois de escrever “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo expressou sua desilusão com a luta interna entre frações em geral numa carta (14 de dezembro de 1904) para o socialista de esquerda holandês Henriett Roland-Holst:

“O oportunismo é em todo caso uma planta de pântano, que cresce rapidamente e de forma diversificada nas águas paradas do movimento; num rápido fluxo de água corrente ele morreria por si próprio. Aqui na Alemanha um movimento para a frente é uma necessidade urgente, imediata! E muitos poucos percebem isso. Alguns desperdiçam suas energias em disputas pequenas com os oportunistas, outros acreditam que o automático, mecânico aumento dos números (nas eleições e nas organizações) é um progresso em si mesmo!”
– citado em Carl E. Schorske, Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955). 

A crença de Luxemburgo de que um ascenso de luta de classes iria naturalmente dispersar as forças oportunistas no SPD se provou muito errada. Em 1905, e novamente em 1910, uma linha crescente de agitação de massa contra o sufrágio restrito foi efetivamente suprimida por iniciativa da burocracia sindical. Em 1910 a Neue Zeit, sob a direção de Kautsky, chegou a se recusar a publicar o artigo de Luxemburgo defendendo uma greve geral.

Ao concluir “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo desenvolve uma teoria sobre a inevitabilidade do oportunismo e mesmo de fases oportunistas num partido socialdemocrata. Tentativas de preservar completamente o partido contra o oportunismo através de meios organizativosinternos só irá, afirma ela, reduzir o partido a uma seita. Aqui jaz a diferença fundamental entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e em diante:

“Daqui segue que este movimento pode avançar melhor se posicionando entre os dois perigos pelos quais é constantemente ameaçado. Um é a perda de seu caráter de massa; o outro, o abandono de seu objetivo. Um é o perigo de se reduzir de volta à condição de uma seita; o outro, o perigo de se tornar um movimento de reforma social.”

“É por isso que é ilusório, e contrário à experiência histórica, esperar consertar, de uma vez por todas, a direção da luta socialista revolucionária com a adição de meios formais, dos quais se espera que assegurem o movimento operário contra todas as possibilidades de digressão oportunista.”
“A teoria marxista nos oferece um confiável instrumento que nos permite reconhecer e combater típicas manifestações de oportunismo. Mas o movimento socialista é um movimento de massa. Seus perigos não são as insidiosas maquinações de indivíduos ou grupos. Eles surgem a partir de inevitáveis condições sociais. Nós não podemos assegurar a nós próprios de ante-véspera contra todas as possibilidades de desvio oportunista. Tais perigos podem ser superados apenas pelo próprio movimento – certamente com a ajuda da teoria marxista, mas apenas após os perigos em questão terem adquirido forma prática tangível.”
“Visto desse ângulo, o oportunismo aparece sendo um produto e uma fase inevitável do desenvolvimento histórico do movimento operário.”

Devido a tentativas de elementos semi-sindicalistas e comunistas de ultra-esquerda (por exemplo, “comunistas de conselho”) de reivindicar Rosa Luxemburgo, é frequentemente ignorado que sua polêmica contra Lenin sobre a questão organizativa foi travada em conceitos socialdemocratas ortodoxos. A passagem citada acima é ultra-kautskista ao identificar o partido social democrata com todo o movimento operário. Partindo da premissa do “partido de toda a classe” de Kautsky, a lógica de Luxemburgo é inatacável. Não apenas haverá uma ala oportunista de um partido socialdemocrata, mas deverá haver períodos nos quais a influência dessa ala vai se expandir.

Do ponto de vista alemão, Luxemburgo via que formar um partido leninista significava romper com tendências significativas da classe trabalhadora que estivessem sob liderança e influência oportunista. Essa conclusão anti-socialdemocrata era bloqueada da visão de Lenin pelo estado desorganizado do partido Russo. Ao contrário de Luxemburgo, Lenin não fora confrontado com tendências socialdemocratas oportunistas que tivessem uma base social de massas. Ele acreditava que os Mencheviques fossem uma tendência intelectualista incapaz de construir um movimento de trabalhadores de massa.  

Kautsky e Bebel Intervêm para Restaurar a Unidade 

Enquanto a polêmica anti-leninista de Luxemburgo é hoje muito mais conhecida, naquele tempo a ativa intervenção pró-unidade da liderança central do SPD, Kautsky e Bebel, foi mais significativa. É importante considerar a intervenção de Kautsky/Bebel para compreender que Lenin construiu um partido revolucionário programaticamente homogêneo na Rússia face a oposição das autoridades líderes da Internacional Socialista.

No começo de 1904, um dos seguidores mais próximos de Lenin, Lydin-Mandelstamm, escreveu um artigo sobre o racha para ser publicado no Neue Zeit de Kautsky. Kautsky se recusou a publicá-lo, e sua resposta a Lydin no meio de março de 1904 é a sua mais antiga declaração escrita sobre o racha. Ele considera o racha completamente injustificável e profundamente irresponsável. Ele também foi astuto o suficiente para reconhecer que foi a intransigência de Lenin quanto à questão organizacional que perpetuou o racha:

“Uma grande irresponsabilidade paira sobre a socialdemocracia russa. Se ela não pode se unir, então ela irá ficar para a história e para o proletariado internacional como um grupo de políticos que, fora as suas dificuldades pessoais e organizacionais de uma natureza muito pequena se comparada à sua grande tarefa histórica … deixou escapar a oportunidade de dar uma golpe no absolutismo russo. Mas Lenin carregaria a responsabilidade por ter iniciado essa discórdia destrutiva.” [nossa tradução]
– citado em Dietrich Geyer, “O Racha partidário russo em comparação à socialdemocracia Alemã 1903-1905”, no International Review of Social History (1958) 

Na substantiva questão organizativa que levou ao racha, Kautsky viu “nem uma oposição de princípios entre as necessidades do proletariado e dos intelectuais nem entre democracia e ditadura, mas simplesmente uma questão de adequação”.

Kautsky mandou uma cópia de sua resposta a Lydin à liderança menchevique, que considerou-a imediatamente um apoio ao seu lado. Com a permissão do autor, ela foi publicada no novo Iskra. Numa carta (4 de junho de 1904) para Axelrod, Kautsky aprofundou sua posição pró-menchevique ao ponto de lhes dar conselhos sobre como lidar com Lenin:

“Mas em grande medida as diferenças entre vocês e o outro lado parecem se basear entre mal-entendidos. Não entre vocês e Lenin, que eu considero fora de questão, mas entre vocês e os apoiadores de Lenin na Rússia. Eu tive ao menos a oportunidade de conversar com vários apoiadores de Lenin que vieram da Rússia e não encontrei entre eles pontos de vista que tornariam a cooperação … impossível. Os preconceitos deles contra vocês parecem residir simplesmente em informação mal dada. Se for assim, então uma unificação deverá ser possível, por cima e sobre a cabeça de Lenin, se esses elementos forem tratados de forma cuidadosa”.
– Idem. 

E, de fato, os Mencheviques procuraram, com algum sucesso, ganhar os bolcheviques mais conciliatórios.

Uma indicação mais pública da posição anti-Lenin de Kautsky foi que a Neue Zeit publicou o “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” de Luxemburgo sem dissociar a revista das visões nele expressas. Quando Lenin escreveu uma resposta, Kautsky recusou-se a publicá-la sob o argumento de que a Neue Zeit não era a arena apropriada para a luta dos rachas do POSDR. Numa carta (27 de outubro de 1904) para Lenin, ele justificou a publicação do artigo de Luxemburgo argumentando que:

“Eu não publiquei o artigo de Rosa Luxemburgo porque ele tratava das disputas russas mas, por razão contrária a essa. Eu o publiquei porque ele tratava da questão organizativa de forma teórica, e essa questão também é assunto de discussão nossa na Alemanha. As disputas russas são tocadas nele de uma forma que não chamarão atenção ao leitor desinformado.” [ênfase no original]
– Idem. 

Essa última afirmação de Kautsky não é ingênua.

Kautsky aconselhou Lenin a reformular sua resposta em termos mais teóricos caso ele quisesse que ela fosse publicada no órgão alemão. Até onde nós sabemos, Lenin não respondeu. Presume-se que Lenin considerava como decisivas as especificidades do racha do POSDR e não queria mergulhar numa discussão abstrata sobre os princípios de organização.

Em outubro de 1904, August Bebel, venerado presidente do SPD, propôs à liderança menchevique que eles chamassem uma conferência de unidade de todos os grupos presentes no segundo congresso do POSDR. Pouco depois, a liderança alemã pediu por uma conferência bem mais ampla, incluindo os populistas pequeno-burgueses Socialistas Revolucionários e o nacional-libertador Partido Socialista Polonês. Assim, em 1904 a liderança socialdemocrata alemã buscou um bloco, senão um partido, abarcando todas as forças oposicionista ao império czarista à esquerda dos liberais burgueses. Os Mencheviques rejeitaram tal unidade ampla como oportunista. Essa era uma indicação prematura de que os seguidores de Martov não estavam, como Lenin erradamente acreditava, à direita da liderança central do SPD.

Kautsky acreditava que os Mencheviques fossem desejosos de restaurar a unidade, como ele era. Mas o posicionamento pró-unidade dos Mencheviques era em parte uma pose para consumo estrangeiro. Na teoria compromissada com um partido amplo, inclusivo, a liderança menchevique não queria estar na mesma organização que os “rígidos” de Lenin. Em resposta à proposição de Bebel, eles concordaram em chamar uma conferência de “unidade” convidando o Bund, o SDRPeL de Luxemburgo/Jogiches e alguns pequenos grupos socialdemocratas. Mas eles recusaram-se a convidar os leninistas! Nesse tempo, Lenin tinham perdido a liderança formal do POSDR e tinha criado o Escritório dos Comitês da Maioria.

Kautsky agora criticava os líderes mencheviques como divisionistas irresponsáveis. Numa carta (10 de janeiro de 1905) para Axelrod, ele escreveu:

“Eu não entendo porque não convidaram Lenin. Isso pode ser bem justificado em termos formais, mas não se pode ver o problema de maneira tão formal. De um ponto de vista político, a exclusão [de Lenin] do convite me parece um erro. Mesmo que ele não represente formalmente a sua organização em particular. Ele ainda tem um grande apoio, a tarefa de vocês é ganhá-lo junto com seus apoiadores ou então separar esses apoiadores dele…. Na situação atual, que exige uma união de todas as forças revolucionárias, minha visão é de que sua tarefa é lavar ao máximo a conciliação. Se a unidade se demonstrar impossível, então Lenin vai ter se posicionado muito mal, e então vocês poderão prosseguir contra ele com muito mais força e sucesso do que no atual momento, onde o seu conflito parece ser quase somente um simples conflito de autoridade”. [ênfase no original]
– Idem. 

Em seguida ao massacre do Domingo Sangrento em janeiro de 1905, a liderança do SPD mais uma vez tentou reunificar o movimento socialdemocrata russo. Bebel publicamente se ofereceu para ser árbitro entre as diferenças. A oferta de Bebel foi concluída com uma reprimenda paternalista à socialdemocracia russa:

“As notícias sobre esse racha despertaram grande confusão e definitivo descontentamento na socialdemocracia internacional e todos esperam que, após uma discussão livre, ambos os lados achem uma base comum para lutar contra o inimigo comum”.
– citado em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940) 

Sabendo que Bebel era politicamente próximo deles, o Mencheviques prontamente aceitaram sua proposta. Lenin de fato rejeitou a proposta de unidade. Numa resposta (7 de fevereiro de 1905) ao presidente do partido alemão, ele declarou que não tinha autoridade para aceitar a oferta do árbitro, que teria que ser colocada num novo congresso do partido. Ele então adicionou que tendo em vista a intervenção unilateral de Kautsky, “não vai me surpreender se a intervenção da parte dos representantes da socialdemocracia alemã encontrar dificuldades entre as nossas colunas”.

O terceiro congresso realizado em abril e todo composto por bolcheviques em abril não definiu nenhuma posição sobre a proposta de Bebel, na prática a rejeitando. O espírito autoconfiante dos Bolcheviques e sua relutância em aceitar a tutela alemã é bem expressa pelo delegado Barsov em seu discurso sobre a oferta de Bebel:

“Nossos camaradas alemães são uma força, eles amadureceram através de inexorável e crítica luta interna contra todas as formas de oportunismo nos congressos do partido e outros encontros – e nós devemos amadurecer da mesma forma para desempenhar nosso grande papel, forjando independentemente nossas próprias organizações num partido, não meramente ideologicamente mas na realidade…. Nós devemos nos tornar líderes ativos de toda a classe proletária da Rússia, unindo e organizando a nós próprios imediatamente para a luta contra a autocracia para o glorioso futuro do reino do socialismo”.
– Idem.  
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