Tendência Vern-Ryan
Uma Carta sobre a Revolução Boliviana
[Publicamos a seguir o primeiro de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]
Sam Ryan, de Los Angeles
1 de junho de 1952
Ao Secretariado do SWP
Prezados camaradas,
Esta carta é um pedido de
esclarecimento sobre o programa e a política do POR da Bolívia. Apresentou-se
ao POR a oportunidade de liderar a revolução e, dessa forma, prestar um grande
serviço ao nosso movimento internacional. Nosso movimento, e não menos o SWP,
tem o dever de dar aos camaradas bolivianos toda a ajuda possível, ambas
material e política. É apenas normal que nós nos Estados Unidos devamos estar
extremamente ansiosos para que os camaradas bolivianos busquem uma política que
lhes trará sucesso.
A entrevista com o camarada Guillermo Lora, publicada em The Militant [jornal do SWP] em 12 e 19 de maio levanta algumas questões sérias sobre o programa e a política do POR que, eu acredito, deveriam ser resolvidas o quanto antes. As questões levantadas na entrevista, e insatisfatoriamente respondidas pelo camarada Lora, incluem:
1. O caráter de classe do governo;
2. O caráter do MNR;
3. Nossa atitude com relação aos conciliadores;
4. O programa transitório
revolucionário para a Bolívia.
Deixe-me comentar brevemente sobre a forma com a qual o camarada Lora parece responder a essas questões.
1. O caráter de classe do governo
Eu acho que é incontestável que o atual
governo boliviano é um governo burguês, cuja tarefa e objetivo são defender por
todos os meios disponíveis os interesses da burguesia e do imperialismo. Ele
irá, se puder, controlar e desarmar a classe operária, esmagar a sua vanguarda
revolucionária e reconstruir a ditadura da burguesia, que foi abalada, mas não
destruída, pela primeira fase da revolução. Esse governo é, portanto, o inimigo
mortal dos trabalhadores e camponeses, e especialmente do partido marxista.
O camarada Lora não levanta
explicitamente a questão do caráter de classe do governo. O mais perto que ele
chega é o seguinte:
“O governo de Paz Estenssoro, dominado por sua ala
reacionária, mostra todas as características marcantes do Bonapartismo,
operando entre o proletariado e o imperialismo”.
Isso implica o caráter burguês do
governo? Talvez. Eu espero que sim. Mas essa é uma questão que terá de ser
respondida, e não por implicação ou inferência, mas diretamente.
Uma coisa parece clara: o camarada Lora
não considera esse governo como um inimigo da classe trabalhadora e do POR:
“Não se pode excluir a possibilidade”, ele diz, “de
que a ala direita do governo, encontrando-se diante do aguçamento da luta de
massas contra si, vá aliar-se com o imperialismo para esmagar o assim chamado ‘perigo’
comunista”.
Essa formulação é errada, muito errada!
Esse é um erro que, se de fato representa a posição do POR, pode ter
consequências trágicas para a própria existência física dos quadros do partido
trotskista boliviano.
Este é o aviso que os líderes do POR
devem dar à classe trabalhadora e acima de tudo aos seus próprios membros: Nós
podemos esperar com absoluta certeza (não meramente “não excluir a
possibilidade”) que o governo (e não apenas a sua ala direita) vai se aliar com
o imperialismo e tentar esmagar o movimento de massas e, acima de tudo, a sua
vanguarda, o POR, que é um verdadeiro (e não o “assim chamado”) perigo
comunista.
“Está fora de dúvida”, conclui Lora, “que o novo
governo está agora sujeito a uma enorme pressão da burguesia feudal (esse termo deve ter sido resultado de uma
tradução mal feita) e do imperialismo, para fazê-lo capitular ou para
destruí-lo. Sob essas condições, o POR defende o governo com toda a sua força,
por meio da mobilização das massas... Hoje, longe de sucumbir à histeria de uma
luta contra o MNR, que os proimperialistas batizaram de ‘fascista’, nós estamos
marchando com as massas para fazer o movimento de 9 de abril o prelúdio para o
triunfo de um governo dos operários e camponeses”.
Três questões separadas parecem se
misturar aqui:
A. A oposição política dos marxistas
a um governo burguês. Um governo que, em razão da sua fragilidade, é forçado a
manobrar com a classe operária e parece não ter ainda “capitulado” à burguesia.
O camarada Lora expressa aparentemente uma posição de imparcialidade.
B. A oposição ao governo pelos
mais abertamente proimperialistas, classificada como “fascista”. Essa oposição
de direita tem o objetivo de fortalecer as bases do governo contra a classe
trabalhadora, ou derrubar o governo, ou ambos. Essa oposição não tem nada em
comum com a oposição marxista pela esquerda, e o camarada Lora é culpado de um
sério erro ao confundir as duas quando ele diz que o POR está “longe de
sucumbir à histeria de uma luta contra o MNR”.
C. A cooperação técnica e material e
a ajuda que os marxistas deveriam dar a um governo do MNR contra um golpe do
tipo Kornilov ou Franco. Isso deve ser angularmente diferenciado de apoio
político, que nós jamais daríamos. Nós continuaríamos a lutar contra o governo
– com meios apropriados à situação, naturalmente – mesmo enquanto estivéssemos
combatendo juntamente com ele contra um levante militar contrarrevolucionário.
Essa confusão feita pelo camarada Lora
de dois tipos diferentes de “oposição” e dois tipos diferentes de “apoio”
parecem ser um paralelo da política potencialmente desastrosa dos
Bolcheviques em março-abril de 1917 que, na ausência de Lenin, declararam seu
apoio ao Governo Provisório contra a reação ou contrarrevolução. Mas ela não
parece nem um pouco com a política de Lenin na luta contra Kornilov, quando ele
escreveu:
“Seria o erro mais profundo imaginar que o
proletariado revolucionário é capaz, por assim dizer, ‘para se vingar’ dos
Socialistas-Revolucionários e Mencheviques, de se recusar a ‘apoiá-los’ contra
a contrarrevolução... Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de
Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos
combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite
aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos,
sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.
2. Qual é o caráter do MNR?
O camarada Lora responde a essa
pergunta da forma como se segue: “O MNR é um partido pequeno-burguês que se
baseia nas organizações das massas”. Eu acho que isso está errado, e que é a
base para uma atitude conciliatória com relação ao MNR. O MNR é um partido
burguês que explora politicamente as massas. A maioria dos seus membros, como
em todos os partidos de massas, são sem dúvida trabalhadores e elementos de
classe média; mas isso não determina o seu caráter de classe. Ele não é
controlado por sua maioria, mas por sua ínfima minoria, e os controladores
ausentes: a classe capitalista. De que outra forma seria possível explicar a
composição do governo que, como diz o camarada Lora, “é maciçamente composto
pelos elementos mais reacionários do MNR e particularmente os maçons... os mais
efetivos agentes do imperialismo”?
É esse o tipo de governo que o POR
defendia quando ele levantou o slogan “Que o MNR tome o poder”? A composição do
governo está em completa conformidade com o caráter do MNR. Eu acredito que foi
errado levantar esse slogan. A não ser que os nossos camaradas desfaçam seu
erro reconsiderando a sua caracterização do MNR, eles irão inevitavelmente sofrer
juntamente com o MNR quando as massas, por sua própria experiência, começarem a
ver o verdadeiro caráter de classe desse partido burguês.
3. Nossa atitude com relação aos conciliadores
Com relação aos líderes operários no
governo, o camarada Lora toma uma atitude inequívoca: ele os apoia, e não
apresenta nenhuma crítica ao seu papel. “Os trabalhadores têxteis”, diz ele,
“obrigaram o MNR a aceitar elementos da classe operária no gabinete”. O POR
apoiou esta demanda? A suposição é forte de que sim. O camarada Breitman [do
SWP] cita o New Leader, que diz que o camarada Lora é o secretário
de Lechín, o principal líder sindical no governo do MNR; e Breitman não
contradiz esse relato. Se for verdade, isso não posicionaria o POR como um
membro subordinado de um governo burguês de coalizão? E mesmo se esse relato
não for verdadeiro, a situação não é decisivamente diferente. Suponha que o POR
tivesse força o suficiente para garantir a sua entrada no gabinete. E se, como
todos esperamos e desejamos, o POR ganhasse mais apoio de massa no futuro, ele
entraria então em um governo burguês de coalizão? Essa é a lógica da posição
colocada pelo camarada Lora.
A atitude marxista sempre tem sido e
continuará sendo de hostilidade com relação aos conciliadores; de chamá-los a
romper com os políticos burgueses e formar um governo de trabalhadores e
camponeses. De acordo com os informes mais recentes, Lechín está capitulando à
ala direita do governo na questão da nacionalização das minas. Isso não deveria
ser nenhuma surpresa para nós. Isso era inevitável. Quanto o POR não teria
ganhado em confiança das massas se ele tivesse previsto essa capitulação?
Quanto ele perdeu por seu apoio aos conciliadores?
É claro que o POR teria tido como
consequência a perda da simpatia de Lechín. Mas Lechín é um simpatizante
traidor e indigno de confiança. Lechín irá capitular de novo e de novo. Ele irá
ajudar a desarmar os trabalhadores. Ele irá ajudar a tentar esmagar o POR, não
importa o quanto este o apoie. E a traição de Lechín será facilitada se o POR
continuar a apoiá-lo.
4. O programa de transição
revolucionário
A independência do partido
revolucionário é uma lei absoluta numa situação revolucionária. Mas isso não
cai do céu. Ela surge a partir da teoria marxista e do programa do partido. As
principais palavras de ordem levantadas por nosso partido, de acordo com o
camarada Lora foram as seguintes:
“1. Restauração da constituição do país através da
formação de um governo do MNR, que obteve maioria nas eleições de 1951.”
“2. Lutar pela melhoria de salários e condições de
trabalho.”
“3. Lutar por direitos democráticos.”
“4. Mobilizar as massas contra o imperialismo, pela
nacionalização das minas, e pelo cancelamento do acordo com as Nações Unidas.”
Os pontos 2 e 3 são claramente
insuficientes para diferenciar nosso partido das outras tendências do movimento
operário. Elas são genéricas demais. A forma com a qual nós levantamos a luta
deve ser elaborada de tal forma que seja parte do programa de transição
revolucionário.
A demanda pela nacionalização das minas
é suficiente para diferenciar o programa marxista daquele de todas as outras
correntes? Eu acredito que não. Ambas as alas de direita e de esquerda do MNR
são a favor da nacionalização. E não existe razão para supor que o MNR não
possa ser forçado a cumpri-la a um grau ou outro. Cárdenas, Mossadegh, Perón,
todos realizaram nacionalizações sem perderem nem um centímetro do seu caráter
burguês.
A nacionalização não muda o caráter de
classe do Estado. A nacionalização em si só tem um caráter de classe de acordo
com o governo que a realiza. É claro que nós não nos opomos a tais
nacionalizações; nós as defendemos contra o imperialismo. Mas a questão
decisiva permanece: qual classe possui o poder político e militar? O poder de
Estado está nas mãos da burguesia ou do proletariado? E o poder burguês só pode
ser removido pela revolução proletária.
O camarada Lora aparentemente não
distingue essa linha marcante no caráter de classe do Estado. Por sua designação
desse governo como “Bonapartista” operando entre o proletariado e o
imperialismo, por sua caracterização do MNR como um partido pequeno-burguês, e
por sua ênfase na nacionalização, ele parece considerar o presente regime como
um regime transitório que não teria caráter de classe fixo.
“Agora é necessário”, diz o camarada Lora, “lutar
pela nacionalização das minas, das indústrias principais, e da terra. Essa luta
estará intimamente conectada com o desenvolvimento de um levante de massas, com
o envolvimento dos novos setores da classe operária na luta, de tal forma que
ela assuma um âmbito nacional, e finalmente a constituição de um governo de
operários e camponeses”.
Uma aplicação dessa intenção obviamente
resultaria na elaboração de um programa transitório. Portanto, eu espero que
ele seja elaborado.
Mas como isso se adequa à demanda pela
restauração da constituição burguesa? Eu me lembro muito bem o quanto os
trotskistas franceses foram criticados (e muito corretamente) por votar a favor
de uma constituição burguesa. Eles se defenderam apontando para o fato de que
as organizações da classe trabalhadora a apoiavam, enquanto os reacionários
eram contra. É essa a justificativa do POR? Isso tornaria a política marxista
muito simples: veja o que a extrema direita está fazendo e faça o oposto.
As massas estavam lutando sob a palavra
de ordem de restauração da constituição? Os marxistas podem participar da luta
das massas sem levantar as palavras de ordem incorretas delas. É verdade que
eles seriam então uma minoria; mas esse é o preço que devemos pagar por apontar
as necessidades objetivas que as massas ainda não compreendem completamente. Os
marxistas devem explicar pacientemente.
O camarada Lora menciona a influência
que o POR ganhou na ala esquerda do MNR. Uma influência imprestável me parece,
se ela foi obtida adotando o programa do MNR. Uma “frente única” com um partido
burguês com o objetivo de estabelecer uma constituição burguesa e colocar o
partido burguês no poder não é uma frente única, mas uma frente popular.
A frente única que os marxistas
reivindicam tem o objetivo de unir operários e camponeses numa base de acordo
mínima, incorporando um estágio do programa de transição revolucionário. Essa
frente única, numa situação revolucionária, se transforma em sovietes de
trabalhadores e camponeses. E mesmo nos sovietes a luta continua. Longe de
aceitar o programa conciliador que possa ser imposto sobre os sovietes, os
marxistas reivindicam seu próprio programa, chamando os sovietes a romper com a
burguesia, seus partidos e seu governo, e a tomar completamente o poder,
estabelecendo um governo operário e camponês.
Mas o camarada Lora não levanta a
questão de romper com o governo burguês. O governo operário e camponês que ele
reivindica parece ser uma conclusão última da mudança gradual de cargos no
governo burguês, onde os direitistas seriam forçados a sair e o gabinete
ganharia um tom cada vez mais para a esquerda.
Numa situação revolucionária, o slogan
de governo operário e camponês não é um objetivo último, mas uma demanda
imediata, inseparável de romper e destruir o governo burguês. O governo dos
trabalhadores e camponeses pode ser atingido, na verdade, apenas como a
ditadura do proletariado.
Esta carta, camaradas, se baseia em uma
única entrevista com um líder do POR. Eu suponho – na verdade, espero
ardentemente – que eu não tenha base o suficiente para caracterizar a política
do POR. Eu, portanto, contive o tom das minhas críticas ao máximo. Mas há o
perigo, ou ao menos a possibilidade de, no meio de uma grande luta, ser
carregado pelo fluxo dos acontecimentos. Sem tentar impor aos camaradas
bolivianos suas táticas específicas, os líderes do nosso partido devem ajudar o
POR a basear suas táticas estritamente no programa marxista revolucionário, a
única esperança para a vitória.
Eu espero que vocês vejam esta carta no
espírito no qual ela é escrita: mais um questionamento do que uma crítica.