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A Escola Stalinista de Falsificação Revisitada (1)


1. A Revolução Permanente

Nos seus esforços para trair as lutas dos trabalhadores e camponeses, os stalinistas precisam continuar a manter uma aparência revolucionária. No entanto suas doutrinas se colocam em oposição à linha do marxismo. Isso os põe em um dilema, que eles só podem resolver recorrendo a mentiras sistemáticas sobre os trotskistas. Isso vai desde distorções das posições políticas de Trotsky (assim como das de Marx e Lenin), até negar o papel de liderança de Trotsky como organizador militar da revolução de outubro e acusa-lo de realizar espionagem para o império japonês! Enquanto muitas das acusações específicas levantadas contra Zinoviev, Bukharin e outros líderes bolcheviques durante os Processos de Moscou foram admitidos como completas invenções por Kruschev em 1956, o método permanece. Hoje nós estamos testemunhando um renascimento difundido da “Escola Stalinista de Falsificação”, especialmente por parte de vários grupos maoístas. Assim como Stalin nos seus dias precisava de uma forma de encobrir seus crimes contra a classe trabalhadora, os maoístas de hoje devem recorrer a calúnias criminosas para poder encobrir a sua política contrarrevolucionária em Bangladesh, na Indonésia e em outros lugares. Essa série tem o objetivo de responder a essas mentiras e de ser uma introdução a alguns conceitos básicos do trotskismo, conforme eles foram desenvolvidos na luta contra o reformismo stalinista ao longo dos últimos cinquenta anos.

 A luta entre a linha reformista do stalinismo e a política revolucionária de Marx, Lenin e Trotsky não é um assunto acadêmico de interesse apenas para historiadores. As políticas contrarrevolucionárias do “Grande Organizador de Derrotas” (Stalin) levaram não apenas ao assassinato de Trotsky por um agente da GPU de Stalin e de dezenas de milhares de membros da Oposição de Esquerda russos nos campos de concentração da Sibéria, mas também à estrangulação das revoluções chinesa (1927), alemã (1933), francesa (1936), espanhola (1937), indonésia (1965) e francesa (1968), assim como a “acordos de paz” traidores dos stalinistas vietnamitas em 1946 e 1954. A luta contra stalinismo e trotskismo é literalmente uma questão de vida ou morte para o movimento revolucionário e deve receber a maior atenção dos militantes que buscam a estrada do marxismo.

O que é a Revolução Permanente?

No centro desse conflito está a teoria trotskista da revolução permanente. Essa teoria, primeiramente formulada na época da revolução russa de 1905, foi resumida por Trotsky em seu artigo “Três Conceitos da Revolução Russa”, escrito em 1939:

“(...) a completa vitória da revolução democrática na Rússia é concebível apenas na forma da ditadura do proletariado, apoiada pelo campesinato. A ditadura do proletariado, que iria inevitavelmente colocar na ordem do dia não apenas tarefas democráticas, mas também as socialistas, iria ao mesmo tempo dar um poderoso ímpeto à revolução socialista internacional. Somente a vitória do proletariado no Ocidente poderia proteger a Rússia da restauração burguesa e garantir a possibilidade de completar o estabelecimento do socialismo.”

É nessa teoria, que o dirigente maoísta Davidson e os stalinistas rejeitam quando dizem que “As visões de Trotsky sobre o curso da Revolução Russa, assim como as dos mencheviques, foram refutadas pela história” (Guardian, 4 de abril de 1973). Na verdade, a teoria de Trotsky não foi confirmada na prática em 1905 apenas porque o levante nunca chegou à tomada do poder. O curso da revolução russa de 1917 verificou completamente essa teoria. Apenas a ditadura do proletariado, incorporada pelo poder soviético, poderia resolver a questão da paz e da terra, assim como liberar as nações oprimidas pelo regime czarista. Além disso, uma análise cuidadosa das visões de Lenin em 1905 e 1917 mostra que ele chegou a um acordo nos aspectos essenciais com a formulação de Trotsky, e abandonou o seu antigo slogan de uma “ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato”.

A afirmação stalinista de que Lenin ainda defendia a “revolução democrática” em 1917 e chamou pelo “socialismo em um só país” são pura invenção. Da mesma forma, a sua acusação de que o slogan de Trotsky era “Abaixo o Czar, por um Governo dos Trabalhadores”, supostamente ignorando o campesinato, foi repetidamente negado por Trotsky. O slogan da revolução permanente foi, ao invés disso, pela ditadura do proletariado, apoiada pelo campesinato.

Na visão de Trotsky, em razão do desenvolvimento desigual e combinado da economia mundial, a burguesia dos países atrasados estava estreitamente ligada aos interesses feudais e imperialistas, e isso a impedia de levar em frente as tarefas fundamentais da revolução burguesa – democracia, revolução agrária e emancipação nacional. Na presença de um campesinato energizado e uma classe trabalhadora combativa, cada um desses objetivos iria ameaçar diretamente a dominação política e econômica da classe capitalista. As tarefas da revolução burguesa só podem ser resolvidas pela aliança do campesinato e do proletariado.

O marxismo defende que só pode haver uma classe dominante no Estado. Uma vez que, como declara o Manifesto Comunista, o proletariado é a única classe revolucionária consistente, a aliança deve tomar a forma da ditadura do proletariado, apoiada pelo campesinato. Ao levar adiante as tarefas democráticas da revolução, o Estado proletário deve inevitavelmente realizar “ações despóticas contra os direitos de propriedade burgueses” (ou seja, a expropriação dos latifundiários), e assim a revolução passa diretamente para as tarefas socialistas, sem pausar em nenhuma “etapa” arbitrária ou, como disse Lenin, sem erguer uma “muralha da China” entre as fases burguesa e proletária. Assim a revolução se torna permanente, finalmente levando à completa abolição das classes (socialismo).

Mas o socialismo é o produto da liberação das forças produtivas ao nível mais alto do desenvolvimento capitalista: as classes podem ser abolidas apenas eliminando a penúria, ou seja, a escassez. Assim, enquanto a ditadura do proletariado pode ser estabelecida em um país isolado e atrasado, o socialismo deve ser o alcance conjunto de ao menos vários países avançados. Por essas razões complementares, a revolução deve ser estendida e se aprofundar – ou então necessariamente perecer. De forma que a oposição entre a “revolução permanente” de Trotsky e o “socialismo em um só país” de Stalin é na realidade a oposição entre o socialismo em escala mundial e o mais brutal regime fruto de uma reação burguesa-feudal (barbarismo); não existe caminho do meio.

Enquanto a formulação teórica da revolução permanente foi um feito de Leon Trotsky, o conceito foi primeiramente introduzido por Karl Marx em 1850. Davidson, em seu esforço para cobrir o “socialismo em um só país” de Stalin com o manto do marxismo, sustenta que o uso por Marx da expressão “revolução permanente” era simplesmente uma observação geral sobre a continuidade da luta de classes até o socialismo:

“Assim a revolução é ‘permanente’ de duas formas. Primeiro, olhando para o futuro, o seu curso é de lutas de classes ininterruptas até que as próprias classes estejam abolidas. Segundo, olhando para trás historicamente uma vez que as classes estejam abolidas, a revolução é permanente no sentido em que não há mais luta de classes e a tomada do poder e dominação de uma classe sobre a outra.”
Guardian, 4 de abril de 1973

Nesse nível de abstração, não é nenhuma surpresa que Davidson conclua que a diferença surge somente “na particularidade da questão”. Mas deixe-nos dar uma olhada no que Marx realmente disse:

Ao passo que os pequeno-burgueses democratas querem pôr fim à revolução o mais depressa possível, realizando, quando muito, as exigências atrás referidas, o nosso interesse e a nossa tarefa são tornar permanente a revolução até que todas as classes mais ou menos possuidoras estejam afastadas da dominação, até que o poder de Estado tenha sido conquistado pelo proletariado, que a associação dos proletários, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro, tenha avançado a tal ponto que tenha cessado a concorrência dos proletários nesses países e que, pelo menos, estejam concentradas nas mãos dos proletários as forças produtivas decisivas. Para nós não pode tratar-se da transformação da propriedade privada, mas apenas do seu aniquilamento, não pode tratar-se de encobrir oposições de classes, mas de suprimir as classes, nem de aperfeiçoar a sociedade existente, mas de fundar uma nova.
Karl Marx, “Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas” (1850)

Essa é, de fato, uma poderosa polêmica, 75 anos adiantada, contra a sofística de Stalin sobre “socialismo em um só país”. A teoria de Trotsky é um desenvolvimento posterior dessas proposições fundamentais na época do imperialismo, quando o capitalismo penetrou através das regiões atrasadas e os pré-requisitos para o socialismo em uma escala mundial já existem (colocando em risco, portanto, até mesmo as mais jovens burguesias dos antigos países coloniais).

Revolução em Etapas: Alemanha 1848

De acordo com os stalinistas, o erro principal do trotskismo é a sua falha em reconhecer a necessidade das “etapas” da revolução, em particular a etapa democrática em oposição à etapa socialista. Um dos mais ilustres predecessores de Davidson escreveu (poucos anos antes de Stalin ordenar o seu assassinato sob a acusação de “trotskista”!):

“O camarada Trotsky coloca a ditadura da classe trabalhadora no começo do processo, mas não vê os passos e transições que o levaram até essa ditadura; ele ignorou a relação concreta das forças... ele não viu as etapas da revolução...”.
N. Bukharin, “Sobre a Teoria da Revolução Permanente”, 1925

Vamos considerar essa “teoria” da revolução em duas etapas e a “particularidade” da revolução permanente. Será que Marx, talvez, tinha tal teoria? Marx, é claro, distinguia as revoluções proletária e burguesa pelo seu conteúdo social, já que elas representam diferentes épocas de desenvolvimento histórico. Mas mesmo em meados do século XIX, começava a ficar claro que a burguesia era muito fraca e o proletariado muito poderoso para que existisse uma “muralha da China” entre as revoluções proletária e burguesa. Distintas em seu conteúdo social, elas estariam muito próximas historicamente. A revolução alemã de 1848 tornou essa proximidade particularmente clara. No Manifesto Comunista, Marx e Engels escreveram:

“Para a Alemanha dirigem os comunistas a sua atenção principal. Há duas razões para isso. Primeiro porque a Alemanha está em vésperas de uma revolução burguesa. Segundo porque esta revolução irá acontecer em condições de maior progresso relativo da civilização europeia em geral, e com um proletariado muito mais desenvolvido do que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII. Consequentemente, na Alemanha do século XIX, a revolução burguesa só pode ser o prelúdio imediato de uma revolução proletária.”

Marx não acreditava que a classe trabalhadora fosse atingir diretamente a vitória em 1848, mas que ela seria obrigada a apoiar a burguesia liberal e a pequeno-burguesia até onde elas lutassem contra a reação feudal-absolutista. Mas mesmo nesse período pré-imperialista, quando o proletariado era bastante fraco e politicamente dominado pelos interesses artesãos e democráticos da pequeno-burguesia, ele aconselhou os trabalhadores a “simultaneamente erigir seu próprio governo revolucionário dos trabalhadores apesar do novo governo oficial” para poder se opor ao seu aliado prévio, assim como o “armamento geral do proletariado”.

A previsão de Marx de que a revolução proletária iria acompanhar de perto as revoluções burguesas de 1848 não se comprovou. Mas tampouco foram bem sucedidas essas revoluções democrático-burguesas, precisamente porque o medo de que uma revolução proletária fosse irromper se o menor passo fosse dado para levantar as massas levou os liberais aos braços da reação prussiana e austríaca. Ligada aos feudalistas por um medo comum da revolução social, os liberais se esforçaram não para derrubar a monarquia (como fez a burguesia francesa em 1789), mas para dividir o poder com os feudalistas. A burguesia alemã não podia se elevar acima do nível de uma “aristocracia lojista” (“shopocracy”) conforme classificou Engels.

Revolução em Etapas: Rússia 1905

A revolução russa de 1905 novamente levantou a questão da revolução permanente, mas em uma forma muito mais aguda. A burguesia russa era muito mais fraca do que a alemã. Por séculos a principal característica do desenvolvimento russo fora o seu primitivismo e lentidão, resultantes da localização geográfica desfavorável da Rússia e da sua população dispersa. O desenvolvimento capitalista na parte norte do Império tinha sido primariamente importada do Ocidente pelo Estado autocrático, e simplesmente inserido na economia feudal existente. Assim, enquanto um proletariado industrial moderno estava se formando nas principais cidades, concentrado em grandes fábricas que utilizavam as mais avançadas técnicas, as manufaturas e oficinas urbanas que haviam formado a base econômica da burguesia no Ocidente, nunca tiveram tempo para se desenvolver. Com a grande indústria primariamente nas mãos do capital europeu e dos bancos estatais, a classe capitalista russa permaneceu pequena em tamanho, isolada, semiestrangeira e sem tradição histórica. Além do mais, ela permaneceu ligada por uma série de laços ao Estado feudal-absolutista e à aristocracia fundiária. Uma revolução liderada pela burguesia que pudesse resolver as tarefas da democracia, revolução agrária e emancipação nacional, estava totalmente fora de questão. E, no entanto, permaneciam as tarefas da revolução burguesa.

Diante dessa realidade as duas alas do Partido Operário Social Democrata Russo tomaram duas posições bastante distintas. Os mencheviques, com seu formalismo escolástico e sua total falta de vigor, deduziram do caráter democrático das tarefas iniciais da revolução a “estratégia” de aliança com a burguesia liberal. Em um discurso no “Congresso de Unificação” do POSDR (1906), Axelrod, um líder menchevique, pontuou:

“As relações sociais na Rússia só amadureceram para uma revolução burguesa... Enquanto a ilegalidade política geral persistir, nós não devemos chegar nem sequer a mencionar a luta direta do proletariado contra outras classes pelo poder político... Devemos lutar pelas condições do desenvolvimento burguês. As condições históricas objetivas condenam o nosso proletariado a uma inevitável colaboração com a burguesia contra o nosso inimigo comum.”

Essa conclusão era derivada da simples cópia mecânica do esquema clássico do desenvolvimento europeu (e mais particularmente o francês) para as condições russas, ou as implicações de que uma revolução proletária só poderia vir após muitas décadas de desenvolvimento capitalista. O cerne da posição menchevique foi capturado pelo apontamento de Plekhanov de que “nós devemos prezar pelo apoio aos partidos não-proletários e não afastá-los de nós com um comportamento indelicado”. A isso, Lenin respondeu: “... os liberais entre a nobreza vão lhe perdoar milhões de atos ‘indelicados’, mas eles nunca irão perdoar insinuações de retirar as suas terras”.

E contra a coalizão de Plekhanov com a burguesia, Lenin chamou por um bloco com o campesinato para realizar a revolução agrária. Isso foi codificado na sua fórmula de “ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato”:

“Devemos conhecer de maneira exata quais as forças sociais reais que se opõem ao czarismo (...). Essas forças não podem ser a grande burguesia, os latifundiários, os fabricantes, a ‘sociedade’ que segue os Osvobojdenistas [os liberais]. Vemos que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva. Sabemos que são incapazes, pela sua situação de classe, de uma luta decisiva contra o czarismo: para irem à luta decisiva, a propriedade privada, o capital e a terra são lastros demasiadamente pesados. Eles têm demasiada necessidade do czarismo, com as suas forças policiais, burocráticas e militares, contra o proletariado e o campesinato, para poderem aspirar à sua destruição. Não, a única força capaz de obter a ‘vitória decisiva sobre o czarismo’ é a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato.” (ênfase no original).
V. I. Lenin “Duas Táticas da Social Democracia na Revolução Democrática”, 1905

Essa política era irreconciliavelmente oposta ao insípido liberalismo dos mencheviques e, ao invés disso, incendiava a revolta camponesa e levava o proletariado a um assalto “indelicado” contra a autocracia czarista. Mas ao mesmo tempo ele insistia na caracterização da revolução enquanto burguesa, com o poder a ser posto nas mãos do campesinato e abrindo o futuro para o florescimento de um desenvolvimento capitalista:

“Os marxistas estão absolutamente convencidos do carácter burguês da revolução russa. Que significa isto? Isto significa que as transformações democráticas no regime político e as transformações económico-sociais, que se converteram numa necessidade para a Rússia, não só não implicam por si o enfraquecimento do capitalismo, o enfraquecimento da dominação da burguesia, mas, pelo contrário, desbravarão pela primeira vez realmente o terreno para um desenvolvimento vasto e rápido, europeu e não asiático, do capitalismo e, pela primeira vez, tornarão possível a dominação da burguesia como classe.”
Idem.

A visão de Trotsky, citada no início desse artigo, era diferente daquela dos mencheviques e dos bolcheviques, embora muito mais próximas dos últimos. Como ele posteriormente escreveu:

“A teoria da revolução permanente, que se originou em 1905... apontou que as tarefas democráticas das nações burguesas atrasadas levavam diretamente, em nossa época, à ditadura do proletariado e que a ditadura do proletariado coloca as tarefas socialistas na ordem do dia.”
― “A Revolução Permanente”, 1929

De acordo com Davidson, Lenin “insistiu que a revolução iria se desenvolver em etapas” enquanto Trotsky supostamente ignorava completamente a etapa democrático-burguesa. Isso é simplesmente uma cortina de fumaça. Trotsky nunca negou o caráter burguês das fases iniciais da revolução no sentido das suas tarefas históricas imediatas, mas apenas no sentido de suas forças motoras e perspectivas:

“Já em 1905, os trabalhadores de Petrogrado chamaram seu soviete de um governo proletário. Essa designação passou à linguagem corrente da época e foi completamente incorporada no programa da luta da classe trabalhadora pelo poder. Ao mesmo tempo, nós estabelecemos contra o czarismo um elaborado programa de democracia política (sufrágio universal, república, milícia, etc.). Nós não podíamos agir de outra forma. A democracia política é uma etapa necessária no desenvolvimento das massas trabalhadoras – com a altamente importante reserva de que em um caso essa etapa dura décadas, enquanto em outra, a situação revolucionária permite às massas se emanciparem dos preconceitos da democracia política mesmo antes das suas instituições terem se convertido em realidade.” (ênfase no original).
L. D. Trotsky, “Introdução” a O Ano de 1905, 1922

Davidson novamente tenta escurecer a questão afirmando que Trotsky era “hostil ao campesinato” enquanto “a visão de Lenin é diretamente oposta”. Isso é pura invenção. É verdade que Trotsky descartou imediatamente a ideia de que o campesinato como um todo podia ser um “aliado socialista” da classe trabalhadora:

“Desde o primeiro momento depois da tomada do poder, o proletariado terá que encontrar apoio nos antagonismos entre o rico do vilarejo e o pobre do vilarejo, entre o proletariado agrícola e a burguesia agrícola.”
L. D. Trotsky, “Balanços e Perspectivas”, 1905

Mas com relação a isso, a visão de Lenin era idêntica:

“A luta contra o burocrata e o latifundiário pode e deve ser travada junto com todos os camponeses, até mesmo com os bem-de-vida e os camponeses médios. Por outro lado, é somente junto com o proletariado rural que a luta contra a burguesia e, portanto, também contra os camponeses bem-de-vida pode ser realizada apropriadamente.”
V. I. Lenin, “Socialismo Proletário e Pequeno-burguês”, 1905

A disputa entre Lenin e Trotsky não era sobre se poderia ou não ser pulada a etapa democrático-burguesa da revolução ou se uma aliança entre trabalhadores e camponeses era necessária, mas com relação à dinâmica da colaboração entre o proletariado e o campesinato, o nível de independência do último. Trotsky sustentou (como havia sido demonstrado por toda experiência revolucionária anterior, assim como nos escritos de Marx e Engels) que em razão da sua posição intermediária e a heterogeneidade da sua composição social, o campesinato enquanto classe era incapaz de cumprir um papel independente ou de formar o seu próprio partido independente. Ele ficava compelido a seguir a liderança da burguesia ou então do proletariado.

Revolução em Etapas: 1917

Não é acidente que os artigos de Davidson dificilmente mencionam a revolução de outubro de 1917, saltando das disputas em 1905 a respeito do papel do campesinato direto para a questão do “socialismo em um só país”. De fato, se Davidson tivesse reproduzido os escritos de Lenin desse período ele teria tido que mostrar declarações radicalmente diferentes da visão de Lenin do período de 1905-1907. Antes da chegada de Lenin da Europa em 4 de abril, a maioria do partido bolchevique chamava por um “apoio crítico” ao governo provisório burguês do Príncipe Lvov, que havia tomado o poder depois de a revolução de fevereiro derrubar o Czar. Stalin era o porta-voz chefe desse ponto de vista na conferência de março de 1917 do partido bolchevique. Em seu relatório sobre a atitude do Governo Provisório, ele disse:

“... o Governo Provisório tomou de fato o papel de fortificador das conquistas do povo revolucionário... Não é vantagem para nós no presente momento forçar os acontecimentos, acelerando o processo de repelir as camadas burguesas, que no futuro irão inevitavelmente se afastar de nós. É necessário para nós ganhar tempo colocando um freio no rompimento das camadas burguesas médias... Quando o Governo Provisório fortificar os passos da revolução, então aí nós devemos apoiá-lo; mas quando ele for contrarrevolucionário, não se deve permitir apoio ao Governo Provisório.”
― “Rascunho Protocolar da Conferência de Março de 1917 dos Trabalhadores do Partido de Toda a Rússia”

Enquanto o grosso da liderança do partido chamou a “completar a revolução democrático-burguesa”, Lenin insistiu que a única política revolucionária era chamar pela ditadura do proletariado. Ao tomar essa posição ele se encontrou com o programa de Trotsky da revolução permanente e foi acusado de trotskismo pela ala direita do partido. Isso exigiu um rearmamento ideológico do partido e em determinado momento Lenin ameaçou se retirar do Comitê Central pera poder levar a luta à base do partido, quando as suas “Teses de Abril” foram inicialmente rejeitadas pela liderança. A passagem chave nessas teses declarava:

“A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.”
V.I. Lenin, “Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, 1917

Em direta oposição à posição de Stalin menos de uma semana antes, Lenin exigiu “Nenhum apoio ao Governo Provisório; a total falsidade de todas as suas promessas deveria ser exposta claramente...” (Idem.). A oposição a Lenin foi liderada por Y. Kamenev, que afirmava que “a revolução democrático-burguesa não está completa... Quanto ao esquema geral do camarada Lenin, ele nos parece inaceitável, já que ele procede da crença de que a revolução democrático-burguesa está completa, e se baseia na imediata transformação dessa revolução em uma revolução socialista”. Nas suas “Cartas Sobre Táticas”, Lenin respondeu a essa acusação:

“Depois da revolução [de fevereiro-março de 1917], o poder está nas mãos de uma classe diferente, uma nova classe, que é a burguesia...”.
“Em razão disso, a revolução burguesa, ou democrático-burguesa, está completa.”
“Mas nesse ponto nós ouvimos um clamor de protesto daqueles que prontamente chamam a si mesmos de ‘velhos bolcheviques’. Nós não mantivemos sempre, dizem eles, que a revolução democrático-burguesa é completada só pela ‘ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado’? (...) Minha resposta é: Os slogans e ideias bolcheviques como um todo foram confirmados pela história; mas concretamente, as coisas se desenvolveram diferentemente...”
“O soviete de deputados trabalhadores e soldados – aí está a sua ‘ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado’ já concretizada.”
“Essa fórmula está já antiquada...”
“Uma nova e diferente tarefa agora se põe diante de nós: realizar um racha dentro dessa ditadura entre os elementos proletários (os elementos anti-defensistas, internacionalistas, ‘comunistas’, que defendem uma transição para a comuna) e os elementos pequeno-burgueses...”
“A pessoa que agora só fala da ‘ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado’ está atrasada no tempo, e consequentemente está se colocando, na prática, ao lado da pequeno-burguesia contra a luta da classe proletária; essa pessoa deveria ser mantida no arquivo das antiguidades pré-revolucionárias ‘bolcheviques’...”
“O camarada Kamenev... está repetindo o preconceito burguês sobre a Comuna de Paris querer introduzir o socialismo ‘imediatamente’. Não é bem assim. A Comuna, infelizmente, foi muito lenta em introduzir o socialismo. A verdadeira essência da Comuna... é a criação de um Estado de um tipo especial. Tal Estado surgiu na Rússia, é o soviete de deputados trabalhadores e soldados!”
V.I. Lenin, “Castras Sobre Táticas”, abril de 1917

E a Comuna de Paris, camarada Davidson, era a ditadura do proletariado. Em um artigo para o Pravda por volta dessa época, Lenin formulou a questão de uma maneira idêntica à de Trotsky:

“Nós somos por um governo revolucionário forte... A questão é – qual classe está fazendo esta revolução? Uma revolução contra quem?”
“Contra o czarismo? Se assim for, a maior parte dos latifundiários e capitalistas da Rússia são hoje revolucionários...”
“Contra os latifundiários? Se assim for, a maior parte dos camponeses, mesmo os mais bem-de-vida, ou seja, provavelmente nove décimos da população da Rússia, são revolucionários. Muito provavelmente, alguns dos capitalistas também estão prontos a se tornarem revolucionários uma vez que os latifundiários não podem se salvar de qualquer forma...”
“Contra os capitalistas? Agora essa é o verdadeiro assunto. Esse é o xis da questão, porque sem uma revolução contra os capitalistas, toda essa conversa sobre a ‘paz sem anexações’ e a término rápido da guerra por tal paz é, ou extremamente ingênua e ignorante, ou uma estupidez e uma enganação...”
“Os líderes da pequeno-burguesia – os intelectuais, os camponeses prósperos, os atuais partidos dos narodniks... e dos mencheviques – não estão nesse momento a favor de uma revolução contra os capitalistas...”
“A conclusão é óbvia: somente se o proletariado assumir o poder, apoiado pelos semiproletários, pode-se dar ao país um verdadeiro governo revolucionário forte.”
V. I. Lenin, “Um Governo revolucionário Forte”, maio de 1917

É verdade que Lenin, ambos nessa época e depois, ocasionalmente se referia aos sovietes do período fevereiro-outubro como uma expressão da “ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado”, mas aqueles sovietes não tinham o poder de Estado. A luta por “Todo poder aos sovietes” era, como Lenin defendia, a luta contra a pequeno-burguesia, que não desejava lutar contra o capitalismo. E o Estado que resultou da revolução de outubro era a ditadura da classe trabalhadora, apoiada pelo campesinato. De 1917 em diante, Lenin nunca deixou a entender que pudesse existir algo como um Estado de duas classes, tal como vislumbrado por Stalin e Mao. Como ele defendeu em sua polêmica contra Kautsky, “Os sovietes são a forma russa da ditadura do proletariado” (“A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”, 1918).

Slogans e programa de partidos revolucionários tem um significado concreto na luta de classes: eles chamam por certos cursos de ação e se opõem a outros. Kamenev, que em abril liderou a luta para manter o slogan da “ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado”, em outubro se opôs à insurreição revolucionária, e depois do levante bem sucedido de fato renunciou do Comitê Central do Conselho de Comissários do Povo em protesto. Nesse comportamento, havia ao menos um semblante de consistência.

Mas Davidson e os stalinistas por toda a parte nos querem fazer crer que o “velho programa bolchevique” foi confirmado pela revolução de outubro! Por trás dessa mentira enganosa está um propósito: o de justificar as políticas antirrevolucionárias do stalinismo. É sempre “cedo demais” para demandas socialistas, nós devemos sempre passar por uma “etapa democrática” antes que os camponeses tomem a terra e o proletariado possa expropriar os expropriadores. Como verdadeiro revolucionário proletário, Lenin aprendeu da experiência da revolução de 1917, avançando com um novo programa quando a inadequação do antigo tinha se revelado claramente. Mas o que nós podemos dizer das pessoas que se recusam a assimilar essas lições e, ao invés disso, insistem em proclamar que preto é branco? Na boca de Stalin em 1927, o slogan de uma “ditadura democrática” foi a justificativa para ordenar ao Partido Comunista Chinês que abandonasse suas armas exatamente quando Chiang Kai-shek se preparava para massacrar milhares de comunistas e trabalhadores combativos. Hoje, quando o mesmo slogan é usado para justificar apoio para “anti-imperialistas”, tais quais o Príncipe Sihanouk do Camboja, terá o mesmo resultado – aniquilação dos revolucionários e estrangulamento da revolução. A escolha está colocada para todo o mundo: socialismo ou barbárie, não há caminho do meio.

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